Liberdade de crença é o mesmo que liberdade na crença?
Mariangela Pedro
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Title in English: Is freedom of belief the same as freedom in believing?
We point out that the old dangerous attitude has now been promoted disguisedly under the motto of 'fundamental right'.
Format: for dummies (bullet points)
We highly recommend this essay "for dummies" (only in terms of format), which shows a lot of sources from a diversity of authors.
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- A crença não pode mais justificar a falta de informação. Mas o que ainda caracteriza de forma marcante a atuação de líderes religiosos é o bloqueio, ou o desestímulo, à obtenção de informação por parte dos que estão sob sua liderança.
- Charles Kimball, no livro When Religion Becomes Evil (Quando a religião se torna um mal, 2002, não traduzido), demonstra que tal embaraço à informação constitui indicador de que a religião está corrompida; de que algo está errado. Ele afirma: “... obediência cega é sinal seguro de religião corrompida” (p. 72).
- Entretanto, fé e informação, para a maioria, soam incompatíveis, talvez desde que (São) Tomé se tornou tão conhecido quanto Jesus – Tomé duvidou; Jesus recriminou. Não se pode afirmar que o referido diálogo entre Tomé e Jesus tenha de fato ocorrido. Muito provavelmente, trata-se de mais um entre os diversos trechos intercalados no texto evangélico, para induzir determinado comportamento. Seja como for, fé como “crer sem ver”, sem conhecer tornou-se, sem dúvida, uma definição de fé das mais populares.
- Albert Einstein fez a física se render a ele. Mas não obteve reconhecimento no campo da fé, apesar de ter produzido centenas de pensamentos a respeito. Seu “fracasso”, quase certamente, reside em ele diferir do popular Tomé. Para Einstein, a verdadeira fé é alcançada quando nos superamos no conhecimento pautado na razão. A fé verdadeira, para ele, não dispensa a razão; ao contrário – não vem sem ela. Ninguém quase lhe deu ouvidos aqui.
- Não apenas C. Kimball permanece sem tradução para o português. Bart Ehrman é outro. Esse professor norte-americano, com diversos títulos publicados pela Oxford University Press, há anos confirmou, p.ex., que não se pode atribuir a autoria dos evangelhos a Marcos, Mateus, Lucas e João, o que causaria espanto entre quase todos aqui.
- Em 13 de março de 2005, O Estado de S. Paulo publicou “Um silêncio difícil de amordaçar”, de Maria José Rosado-Nunes, no qual é apontada a omissão em matéria de informar por parte da Igreja. Assim, diz o artigo, o público católico permanece alheio ao fato de que no “campo da Teologia moral, há diversidade interna em relação a práticas aceitáveis quanto à sexualidade e à reprodução humanas”. A autora, focando o aborto, defende que informar permitira às mulheres católicas “uma decisão informada religiosamente”. Essa nos parece uma meta ambiciosa.
- A própria decisão de crer deveria ser “informada”. Devemos reconhecer que não é. Ninguém, hoje, parece imune à transparência em relação aos produtos e serviços que oferece ao consumo, desde os fabricantes de cigarros e bebidas, até os de sucrilhos e achocolatados. Quase ninguém – os grupos religiosos ainda são exceção.
- Os praticantes da religião continuam a ser induzidos a crer. Sem informação. Em nenhum templo ou igreja encontra-se o aviso: “as narrativas do Novo Testamento foram manipuladas por interesses, ao longo de séculos”.
- Crer é nocivo à saúde? A estranheza que a pergunta provoca é outro sinal de que estamos desinformados.
- Crer é responsável pelo entorpecimento do curso evolutivo da humanidade. Essa é a tese proposta pela Fundação Logosófica, uma entidade mineira, em sua publicação Logosofia (no 8, 2004, p.15). O caminho, ela defende, deve ser o do saber, não o do crer.
- “A fé é perigosa. Remove montanhas, mas também joga bombas e impõe censura”, declarou à Veja (16.02.05) Roberto Romano, do departamento de filosofia da Unicamp. Como sugerem as palavras desse professor, não há consenso em relação ao papel da fé nos rumos da humanidade.
- E de que fé estaríamos falando? Da fé que apregoa o “crer sem ver”, ou da fé de Einstein, que só viceja na trilha do conhecimento racional?
- Se quisermos defender a fé como “crer”, a revista Veja, n. 1834, 24.12.03, oferece argumentos entremeados de variadas fontes, entre elas Darwin. A matéria, na p. 110, conclui: “Tudo o que se leu acima são interpretações científicas do mais espetacular fenômeno da humanização, a necessidade de acreditar”. E acrescenta o parecer de um biólogo da Universidade de Harvard: “A aceitação do sobrenatural significou uma grande vantagem por toda a pré-história, quando o cérebro estava evoluindo”.
- E depois da pré-história? “O sistema religioso apresentou uma grande vantagem para os governantes. Se a regra foi estabelecida por uma instância maior, divina, as pessoas não têm o direito de mudá-la, finaliza a referida matéria, citando um professor da PUC de São Paulo.
- Ou seja, se o cérebro humano evoluiu com a crença, os governantes, com o mesmo recurso da crença, subjugaram, posteriormente, os cérebros. Parece, também, que temos bombas demais explodindo, para cérebros supostamente evoluídos.
- Os grandes grupos religiosos “dão a volta” no que seriam cérebros evoluídos, submetendo crianças à doutrinação, à catequese, porque estão cientes de que aquilo em que se acredita aos 13 anos tende a persistir por toda a vida, diz a revista especializada Education Digest (v. 70,2 - outubro 2004). Em artigo focando os Estados Unidos, são apontadas diversas iniciativas, algumas delas violando a lei, para levar à evangelização de crianças. George Barna, líder evangélico, autor do livro Transforming Children into Champions (Transformando crianças em campeões), é assim citado: “... o evangelismo deve visar toda criança mais nova, porque, ao atingir os 10 anos, a maioria delas não está disposta a mudar de idéia quanto à religião” (p. 49 da edição de Education Digest discriminada acima).
- O jornalista Bill Maher, em artigo para a revista Details, julho 2003, conta que ele também foi levado a acreditar em muitas coisas sem sentido, quando tinha apenas cinco anos. Mas, emenda irônico, tudo mudou “porque fui capaz de concluir o curso médio”. Contudo, no mesmo artigo, ele próprio constata que muitos outros continuam a crer, sem análise crítica. Jocosamente, o jornalista desnuda, ao longo do artigo, como a história desmente diversos ditames da doutrina cristã.
- A Fundação Logosófica, na mesma edição da publicação já mencionada, também alega que crer entorpece ou mesmo anula a capacidade de raciocinar e acarreta “desorientação extremamente lamentável”.
- Sabemos, entretanto, que curas e bem-estar são efeitos também alegados, e mesmo alardeados.
- Em O Código Da Vinci (de Dan Brown), o personagem principal afirma que os crentes conhecem a história de sua religião e, portanto, o que ele dizia não seria motivo para manifestações iradas. Já o jornalista e escritor Juan Arias declarou, para Galileu (ed. especial n 2, julho 2003), o contrário: ele constatou a ira acompanhada de desconhecimento.
- Eu mesma já fui alvo da ira de alguns, entre eles um padre. Em um sermão dominical (08.12.2002), ele trovejou, dirigindo o olhar flamejante para mim: “Será que tem gente que só gosta do pai? Não gosta da mãe?... A gente precisa rezar por essas pessoas, mas a vontade que a gente tem é de mandá-las para o inferno”! A razão de tanta fúria: foi parar nas mãos dele um livro de minha autoria, no qual questiono passagens dos evangelhos alusivas à Virgem Maria. Eu, então, começava a rever minha “fé”. Mas, para tal padre, não crer na Virgem é não gostar da própria mãe.
- Nas classes mais favorecidas inclusive, o comum entre nós é crianças e adolescentes terem aulas de religião (doutrina católica), em vez de aulas de história das religiões.
- Muitos, ainda, detêm a idéia de que o desenvolvimento moral depende de se ter uma religião. Isso é o contrário do que estudiosos afirmam. O desenvolvimento moral provém da percepção de valores, enquanto que práticas religiosas, entre elas a confissão, tendem a inibir aquela percepção:
Promover a expectativa de pecado-graça e vinculá-la ao ciclo de confissão-comunhão-pecado pode impedir que a pessoa faça a mais importante de todas as coisas: atentar honestamente para os valores que sutilmente estão por trás de suas ações....Impedimos que tais valores aflorem justamente ao permitir que o superego [parte da personalidade que reprime, condena] domine o padrão de conduta da pessoa, e lide com a culpa e sua manifestação em termos de ofensas contra Deus, sendo tais ofensas reparadas por alguma figura investida de autoridade. (John W. Glaser, “Conscience and Superego”, em Psyche and Spirit, também sem tradução, 1984) - O desenvolvimento moral, inseparável do desenvolvimento humano, mais abrangente, requer que se duvide e, numa etapa posterior, se duvide da dúvida, disse M. Scott Peck, autor de A trilha menos percorrida, para Psychology Today, dezembro 2002. A religião predominante difunde que feliz é quem não duvida. Ouvi em diversos sermões na igreja católica, entre 2002 e 2004, que se deve “fazer como a Virgem Maria e seguir sem discutir”.
- O nível de desenvolvimento moral não passa do estágio inferior para cerca de 90% das pessoas, constatou Kohlberg, conforme em Personality Development in Adulthood (Desenvolvimento da Personalidade na fase adulta), Lawrence S. Wrightsman, editor. Aquele pesquisador desenvolveu uma teoria de estágios de desenvolvimento moral. A estatística apontada por Kohlberg está de acordo com as visões defendidas pela Fundação Logosófica, reproduzidas acima.
- A fé cristã se diz guardiã de princípios elevados, de filosofia das mais sofisticadas. Contudo, observá-los em ação é outra coisa. Sabemos, também, que praticamente todas as grandes empresas (se não todas) ostentam a Qualidade como princípio estratégico-corporativo. Conduzem sessões e mais sessões de treinamento. Nem sempre, porém, o cliente fica convencido disso ao ser atendido por um empregado da empresa. Ao contrário. A filosofia nada pode operar, se o nível de desenvolvimento humano é o inferior, e há formação ou prática religiosa que o reforça.
- As autoridades religiosas costumam alegar, diante de críticas e confrontações, que a Igreja sempre foi perseguida, uma afirmação espúria. Para fiéis pouco afinados com o saber, com o raciocinar, tal argumento basta para “mantê-los na fé”, talvez ainda mais convictos, já que são “perseguidos”. [A verdadeira origem da Igreja de Roma não é a que consta na história, na teologia, nos cursos de seminários. Nem de longe!]
- Julgar, após a leitura livre, que determinados escritos tiveram inspiração divina é uma coisa. Ouvir, desde os quatro ou cinco anos, que em tais escritos está a palavra inquestionável de Deus é outra. Sem tal inculcação, quase ninguém, muito provavelmente, veria inspiração divina nos livros do Novo Testamento. Os evangelhos, em especial, são fartos de contradições devido a sucessivas emendas (várias obras não traduzidas para o português apontam isso). Traduzido (Cia. das Letras), temos o livro Apocalipse, do consagrado D.H.Lawrence, que discorre detalhadamente sobre aquele livro do Novo Testamento, apontando as contradições resultantes de emendas que descaracterizaram o que teria sido uma obra de origem pagã.
- O hábito de leitura – leitura formadora – é praticamente inexistente entre nós. Nenhum dos católicos que entrevistei (todos de classe média, ou classe média alta) afirmou ter lido os evangelhos. Uma leitura pautada na análise crítica, então, deve ser considerada condenável.
- O padre antes mencionado (compelido por uma leitura a despachar uma alma (eu) para o inferno) repetidamente afirma em seus sermões que tudo o que se escreve “por aí” não importa.
- Não cabe, portanto, falar, estritamente, de liberdade de crença. Diante da restrição à informação, não se pode, mais especificamente, falar de liberdade de crença como direito do indivíduo. A liberdade de crença é vantagem para as autoridades religiosas, assegurando-lhes o domínio sobre informação e pessoas (inclusive crianças e jovens). Tal domínio tem sido exercido mais vigorosamente em países latinos desde a Reforma, quando a Igreja começou a perder fiéis na Europa.
- O que garante tal domínio é, portanto, uma “liberdade” que conduz à religião por desinformação; por simples tradição. Domínio que é perpetuado pelo entrave ao desenvolvimento humano que a própria religião impõe. A nobre filosofia religiosa, na verdade, convive com a hipocrisia. Incapazes de viverem os princípios religiosos (o padre citado o ilustra), as pessoas são, então, freqüentemente lembradas, conforme testemunhei também, em recente celebração, de que o que acontece depois (da morte) depende de se crer ou não.
- Em suma, o crente tem uma bizarra “liberdade”, seduzido por uma crença que versa sobre o desconhecido além, insistindo, igualmente, no desconhecimento aqui.
- A boa vontade é muitas vezes ludibriada pela simples alegação de que para ser padre é preciso “estudar muito”. O crente, assim, acha que pode confiar inteiramente em “quem sabe”. Uma das verdades em O Código Da Vinci é esta: os próprios padres são ludibriados. Ninguém é tão doutrinado quanto aquele que precisa doutrinar, diz o livro.
- Este tem sido, precisamente, o papel preponderante da teologia, que conseguiu impor a si o rótulo de ciência, provavelmente porque, como afirma uma edição de Superinteressante especial “Religiões”, que está nas bancas, em matéria de Vaticano, pagando-se tudo é possível. O que permitiu fundar faculdades para ensinar teologia (cristã – não havia outra) foram, naturalmente, recursos abundantes.
- É ensinamento teológico que duvidar da Bíblia representa risco para o indivíduo e a humanidade. Com isso, chegou-se, em 1978, à Declaração de Chicago sobre a Inerrância da Bíblia, cujo teor encontrei no Manual de Teologia Sistemática – uma introdução aos princípios da fé cristã, disponível em grandes livrarias. Inerrância: a Bíblia é inquestionável, absoluta.
- Em contraste, têm-se proposições científicas que, contudo, não podemos esperar encontrar, em português, divulgadas em periódicos como Veja, ou ao alcance fácil da visão em grandes livrarias. Esta, por exemplo:
Sabemos que os textos neotestamentais [do Novo Testamento] ficaram expostos a modificações e manipulações durante longos séculos antes do controle do texto impresso (século XV/XVI)...e, sobretudo, durante aproximadamente cem anos que separam o tempo apostólico da vida de Jesus, das redações definitivas dos textos canônicos e apócrifos. (Eduardo Hoornaert, citado por Augustin Wernet, prof. Dr. do Departamento de História da USP[falecido, de repente, em 19/11/2006], em O “Jesus Histórico” e o “Cristo da Fé”: um histórico das “Vidas de Jesus”)
- O “sabemos” da citação acima restringe-se a um grupo muito reduzido de estudiosos, que podem sofrer censura. (é o meu caso. Ver outras postagens deste blog.)
- Isso corrobora a tese do autor de Quando a religião se torna um mal (When Religion Becomes Evil, já mencionado). “Quase ninguém saber” é sinal de que a religião está corrompida; ou seja, seu efeito não pode ser benéfico, além das fugidias sensações de leveza, insustentáveis no dia-a-dia. Sensações essas percebidas por seres com persistentes dificuldades – mantidas insuperáveis pela religião – em viver com plena lucidez e superioridade moral.
- Eis mais trechos do livro de C. Kimball (When Religion Becomes Evil), que traduzo aqui:
Cristãos que afirmam tomar a Bíblia ao pé da letra ou são ignorantes[desinformados] ou auto-iludidos. p. 57
...convicções religiosas que se fazem pautadas em verdades absolutas podem facilmente levar pessoas a se verem como agentes de Deus [p.ex. George W. Bush]. Tais pessoas, “turbinadas” em intrépidas, são capazes de comportamento violento e destrutivo. p. 70
A arguta observação de Shakespeare é oportuna: “Até o diabo pode citar as escrituras para seus propósitos”. p. 53
Lamentavelmente, substancial número de pessoas são suscetíveis à retórica teológica simplista. p. 53 - Também assim propôs a Fundação Logosófica, na publicação já mencionada, que encontrei nos arquivos de uma biblioteca, e não em bancas ou livrarias:
As pessoas de curtos alcances mentais são propensas à credulidade, porque ninguém as ilustrou devidamente sobre os benefícios que o fato de pensar – e sobretudo saber – representa para suas vidas. Lamentavelmente, é forçoso reconhecer que uma grande parte da humanidade se acha nessas condições. (Logosofia, n 8, p.15) - Proponho que a propensão à credulidade está associada a uma incondicional rendição ao mais cômodo (em “Confrontação e amor; confrontação e amizade – duplas impossíveis? Então, impossível é o Caminho”, artigo de minha autoria, julho de 2004, não publicado). Kimball partilha da idéia: “É muito mais fácil “saber a verdade” do que procurar por ela. Mas uma vida [de fato] religiosa é uma jornada através da qual aprendemos, desaprendemos, mudamos e crescemos” (p. 68 de When Religion Becomes Evil).
- Sem o crescer, o comportamento, dito religioso ou não, é inevitavelmente contraditório. Em 13.03.05, no caderno “mais!” (Folha), um professor da USP comentou recente biografia de João Paulo II, sob o título “O papa paradoxal”.
- Não faça a outros o que não querer que... No mesmo dia (24.02.05) em que a CNBB reclamava ao presidente da República ter sido excluída da comissão que irá discutir a descriminalização do aborto, também lê-se, no O Estado, que teólogo premiado foi “excluído” [pela Igreja] – Hans Küng, assessor no Concílio Vaticano 2, foi proibido de exercer a docência em universidades católicas (em 1979), por ter questionado a infalibilidade do papa.
- Além de constatar a contradição em clamar para si um direito e, ao mesmo tempo, violar o mesmo direito de outrem, devemos, ainda, questionar: que impacto um infalível (ou seus representantes) causaria em um grupo de debate?
- A infalibilidade do papa em questões de fé e moral foi determinada, nos ensina Marcos Guterman, na Folha (25.02.05), pelo Concílio Vaticano 1, em 1870. [Quem percebeu que o Vaticano foi finalmente costurado em 1929, mas desde 1870 já existe esse "primeiro Concílio"? Leiam minha tese....] Tal característica conferida ao papa, “entre outras coisas", garante o Vaticano como uma espécie de monarquia de inspiração absolutista” (p.A15). Que “outras coisas”, além da infalibilidade, seriam essas?
- Muitos católicos a favor do aborto? Então, conclui o cardeal de São Paulo (Folha, 21.3.05), a Igreja deve estar falhando... na evangelização.
- A doutrinação, porém, não se restringe mais ao Vaticano. Multiplicam-se, nos Estados Unidos, conforme aponta Education Digest (outubro 2004), grupos que “assessoram igrejas a cativar crianças e adolescentes com o evangelho de Jesus Cristo, de modo a treiná-las a servir a Ele” (p.48).
- Tal assessoria inclui burlar determinação da Suprema Corte, que baniu, há 50 anos, a doutrinação nas escolas públicas, freqüentadas por 90% das crianças norte-americanas, diz a mesma publicação.
- Se pais, nos Estados Unidos, estão recorrendo à Justiça, não me parece que o mesmo aconteceria entre nós. Colhi, recentemente, uma evidência disso, em conversa com um homem – cerca de 50 anos, classe média/média alta: “Já que a doutrina está estabelecida, é melhor deixar as coisas como estão”. Essa foi sua resposta, diante de algumas das proposições cientificas aqui apresentadas.
- O que faz um adulto julgar ser “melhor” o status quo? A impossibilidade de rever sua crença após os 10 ou 13 anos?
- Tal revisão é possível. Eu mesma a fiz. Mas, também, sou testemunha do isolamento social, das sanções e da evangelização ainda mais feroz empreendidos como reação ao “desaprender e crescer”, o que fortemente desestimula tal revisão.
- Uma última citação de Charles Kimball: O medo, a insegurança e um desejo de proteger o status quo podem promover um tribalismo no qual pessoas, que de outro modo seriam ponderadas, autênticas, se engajam em padrões de comportamento desumanos, e até mesmo em guerra. (When Religion Becomes Evil, p. 87)
- Esse é um quadro diante do qual a democracia, me parece, seria impotente. E isso me preocupa, especialmente ao associar tal quadro a um trecho do livro de João Paulo II, lançado há poucas semanas, segundo o qual “outras formas de governo são mais eficazes do que a democracia, em determinadas condições”. Ao mencionar “aristocracia e monarquia” como alternativas, estaria o papa excluindo o Vaticano? Justamente o contrário, assim me parece.
- A liberdade do indivíduo está sendo desvirtuada até pela genética, que tem-se esforçado em demonstrar que a fé já está “escrita” nos genes. Sucintamente, contra-argumento que as idéias que têm norteado as pesquisas sobre fé naquele campo igualmente serviriam para alegar que mentir, p.ex., é determinado pelos genes, já que as reações físicas e psíquicas que o ato de mentir provocam podem ser, do mesmo modo que aquelas causadas pelo ato de crer, vinculadas a determinados genes. Em outras palavras, associar reações físicas e psíquicas a genes não permite afirmar que o que causou as reações é “inevitável”, dado que genético. Mas é precisamente essa a falácia por trás da “genética da fé” (p.ex., “Is God in our genes?” Time, 29.11.04, p.50-60).
- Se rever a crença já constitui enorme desafio para quase todos, quem se mostra capaz de lidar com os vieses que, por vezes, permeiam a própria ciência? Não a pessoa desinformada; alienada.
- “Sem saber exatamente o que a vida e seu destino lhe exigem saber, como poderá [a pessoa] cumprir sua missão de ser racional e livre”? (Logosofia n 8, p.15, grifos nossos)
- Ninguém deve ser perseguido por crer. Mas devemos ver as alegações de perseguição, de “cristianofobia”, aventadas por líderes cristãos (Folha de S.Paulo, 08.12.04, p.ex.), como, essencialmente, meio certo de obter salvo-conduto que os torna tão acima de controles quanto... Deus.
- É nessas condições que, ao estudar o comportamento do crente sob os fatores conhecimento, autonomia, consciência, percebemos que “liberdade de crença” desponta como uma contradição de termos. "Liberdade de crença" é liberdade na crença?
Precisamos rever isso.