Muito cuidado nesta hora! Os esforços para manter a revista ao empregado e por que ela pegou tanto se ela nada pega
pela editora deste blog
Apresentado ao IBRET, em 19 de julho de 2010, tendo em vista a 4a. Conferência Brasileira de Relações de Emprego e Trabalho Segundo Tema: Condições e ambiente de trabalho
A prática da revista nas empresas só demonstra o atraso em que a relação de trabalho encontra-se... As revistas demonstram reminiscências do trabalho escravo, em que seu proprietário exercia o poder de polícia, de julgar e executar.
Ivan Alemão, professor e juiz
O debate sobre a revista aos pertences do empregado estabelece, de pronto, uma delicada dissensão entre dois princípios constitucionais, que alguns veem solucionada ao se estudar as peculiaridades de cada caso. Análise mais detida, contudo, detecta um impasse de outra natureza e maior peso: a incompatibilidade de mentalidades, que tende a permanecer arrefecida, ou que terá, conforme vislumbrado mais negativamente por outros, um desfecho que acabará por consagrar nossa cultura complacente, de manutenção de privilégios e de domínios "óbvios".
O parágrafo anterior contém nossa principal anotação, após revermos minuciosamente diversos aspectos da questão da revista ao empregado, problemática a que nos dedicamos após termos presenciado - do espaço "café" de uma loja pertencente a imensa cadeia varejista - que empregados, ao saŕem do local de trabalho, um após o outro, tanto homens como mulheres, submetiam-se a um segurança terceirizado, sexo masculino, que vistoriava bolsas e mochilas.
O segurança não tocava em nada; girava a cabeça enquanto olhava para dentro do acessório portado pelo empregado, a quem ninguém chamaria de "colaborador" naquele momento.
Posteriormente, em outra ocasião, um dos empregados, ante minhas perguntas, declarou que eles recebiam ordem para "quando chegar lá [a saída], logo abrir a bolsa para o segurança".
A saída também servia de principal acesso a clientes e, reitero, foi como um cliente que eu presenciei as revistas, feitas, portanto, ao alcance da visão de outros empregados, clientes ou meros visitantes.
Do que observei, não captei reações de empregados adversas à revista, mas o contrário: quase todos os revistados comportaram-se como se cada um deles e o segurança formassem um par de "bons camaradas".
Tal procedimento, que o empregador ainda mantém como imprescindível, enseja, assim, antes mesmo de questionarmos sua pertinência, dúvidas quanto à sua eficácia:
...parte desses seguranças vem trazendo, para o interior das empresas, algumas práticas nefastas de maus policiais, que usam sua autoridade para incriminar inocentes, seja para depois corrompê-los, simplesmente para prejudicá-los, ou para fazer média com o superior hierárquico, colimando sua promoção ou até justificando sua razão de ser. (1)
Seria a revista em si aceitável?
A deputada Cidinha Campos, há quase dez anos, deu um passo capaz de tornar essa pergunta despropositada, já que plenamente respondida: ela é autora do projeto de lei 2433/2001, que "proíbe a revista de empregados por parte dos empregadores". Com essa iniciativa, a parlamentar intencionava "coibir este absurdo", como escreveu na justificativa que integrava sua proposta que, sem deixar de ser mais criteriosa, também apontava a revista como "criminosa".
Contudo, aquela questão não apenas permanece carente de consenso nas diversas esferas, como ora conduz a mais uma pergunta: por que o projeto de Cidinha não teve um trâmite condizente com seus méritos, que muito poucos haveriam de negar abertamente?
Mesmo um levantamento da jurisprudência resultaria pouco esclarecedor se desprezarmos um fator que, avaliamos, permeia a previsão pessimista de Alessandro Medeiros de Lemos (2), para quem a inovação encerrada pelo "entendimento diferente que intentou o Enunciado 15 não logrará êxito". Esse fator, esclarecemos, é o estágio de desenvolvimento moral que, sendo o mais baixo considerando-se a maioria dos indivíduos, responde, assim propomos, pela mentalidade que mantém a revista em si uma prática sine qua non, tendo sido apenas questionada, e em juízo, a forma como a revista foi feita.
Isso já sugere que permanece amplamente inconteste que o empregado está "naturalmente" sujeito, quiçá mesmo propenso, a despersonalização, condição em que nada é dele, nem ele mesmo. A vaga que ocupa, o posto, nome do cargo, tudo é da empresa.
Findo o contrato, restando o ex-empregado abusivamente abusado, pode ele tentar buscar uma reparação. Em tese.
Nesse desequilibrado arranjo implícito, não surpreende que impere o "poder diretivo e fiscalizador" do empregador, poder esse que, conforme emanou de nossa investigação, não repousa de fato na eficácia de impedir danos ao patrimônio, mas em se fazer e se manter ostensivo, o que constitui outra faceta do universo organizacional associada ao pouco desenvolvimento moral generalizado.
O mencionado Enunciado 15 trouxe a revista, melhor, o ato de ser revistado (que remete à perspectiva do empregado), para o foco, eliminando as "conjeturas" que permitiam (e que continuariam a permitir) a prevalência do delito, como se delito não fosse. Recorrendo-se a uma analogia, é como se matar fosse aceitável, fosse um direito, sendo passível de discussão apenas se o modo de matar foi abusivo.
Ensina ainda Lemos que o Enunciado 15 é produto da 1a. Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho, realizada em novembro de 2007. Também desse autor obtemos a redação do referido enunciado, em duas partes:
Primeira parte: Revista. Ilicitude. Toda e qualquer revista, íntima ou não, promovida pelo empregador ou seus prepostos, em seus empregados e/ou em seus pertences, é ilegal, por ofensa aos direitos fundamentais da dignidade e intimidade do trabalhador.
Segunda parte: Revista íntima. Vedação a ambos os sexos. A noma do art. 373-A, inciso VI da CLT, que veda revistas íntimas nas empregadas, também se aplica aos homens, em face da igualdade entre os sexos inscrita no art 5o. inciso I, da Constituição da República.
Aquele autor, contudo, é contrário ao entendimento amplo de revista, que conduz à ilicitude de tal prática, qualquer que seja o procedimento adotado. Para defender sua opinião, ele argumenta que resguardar o patrimônio não é o único propósito do empregador com a revista. Outras movitações seriam: sigilo industrial, segurança (p.ex. impedir explosivos em minas) e proteção ao ambiente (deter, p.ex. a saída da empresa de produtos controlados).
Contudo, ao se debruçar ele sobre a jurisprudência, tem de se voltar para outros fatores, uma vez que, em nenhuma das ações judiciais que aquele autor traz à discussão, os motivos acima estavam por trás da revista, em decorrência da qual o empregado foi a juízo pleitear reparação por danos morais.
A defesa apresentada pelo empregador praticamente se reproduz em todas as ações sob o crivo daquele autor, sugerindo haver um roteiro seguro para o empregador, exposto por seu condenável trato ao empregado revistado, acabar sempre isentado, e ver declarada a revista um direito seu.
Ainda com base em Lemos, definimos o padrão da defesa do empregador, diante do pleito, pelo empregado submetido à revista, de indenização por danos morais:
1) alegação de que a revista não é discriminatória, por isso entendido que todos os empregados são revistados (melhor, todos os de nível hierárquico inferior, de mera execução). É mister ora notar que essa interpretação teve êxito em "diluir" a quase nada, ou nada, a discriminação inerente ao ato de revista, simplesmente ao estender o "incômodo" a todos os empregados;
2) alegação de que a revista não é abusiva, porque quem revista não toca no empregado com as mãos (só com os olhos). Assim parece se forçar sinônimos "revista a pertences do empregado" e "revista de uma autoridade a tropa";
3) alegação de que a revista não é vexatória, dado que o empregado não tira ou levanta a roupa e "ele próprio abre sua bolsa", o que se fez constar no processo RR-301/2003-009-04-00.0, DJ 19/08/2005.
Segundo ainda a mesma fonte, diante da defesa do empregador nesses moldes, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) julga não ser procedente a indenização ao empregado por danos morais.
Em outra ação (00088.2008.007.19.00-6), tem-se que os "trabalhos científicos juntados mostraram um percentual absurdo de perdas internas, entre estas, furtos de empregados. Eis uma realidade que impõe a necessidade da revista".
Diante disso, alegou-se, ainda, no mesmo processo, a necessidade de "ser protegido o consumidor, uma vez que [sic] tais perdas em certa medida não sejam repassadas aos custos finais dos preços dos produtos, com nefastas consequências para a população em geral".
Tem de fato havido uma profusão de pesquisas (mais ou menos científicas) alardeando o furto em empresas, o que certamente está associado com o aquecimento notável do setor de serviços e equipamentos de segurança. Segundo matéria jornalística, os "investimentos" das redes de famárcias para prevenção de perdas chegou a praticamente empatar com o total de furtos, no mesmo período de um ano (2007) (3). Contudo, como a indústria de segurança vive de furtos, estes não haveriam de acabar - não por obra dessa indústria. As estatísticas da Provar/Fia (Programa de Administração do Varejo da Fundação Instituto de Administração), segundo matéria jornalística, apontam uma pequena redução nas perdas do varejo brasileiro: 2003-1,72% e 2004-1,68% (4), que é atribuída, pela referida consultoria, à redução no furto interno (pelos empregados), entre outros fatores. Contudo, outras estimativas de consultorias indicam que o furto por empregados pode ter aumentado percentualmente em relação ao total de perdas, atingindo cerca de 40% das perdas (5), dependendo do ramo do varejo.
O que desponta relevante aqui é que não podemos, com base no ruído em torno dos lucrativos negócios antifurto, concluir que a revista compensa.
Representantes do Ministério Público do Trabalho estão entre os que apontam que a revista afeta negativamente a confiança entre empregado e empregador, o que foi mitigado com a alegação de que hoje tal relação entre as partes não é mais como antes, ora prevalecendo a impessoalidade (6). Tem-se nessa declaração o viés patronal, e não é mesmo sensato esperar que um empregador considere a perspectiva do empregado. Ao entrevistar informalmente uma empresária, à frente de uma pequena, mas muito popular, loja de lanches, ela apenas considerou o lado do empregador, não fazendo nenhuma consideração pela ótica do empregado. Quando eu apontei esse viés para ela, retrucou: "Isso é verdade!".
Mesmo sem dados empíricos, é razoável supor que os empregados, em geral, não esperam que prevaleça a desconfiança no ambiente de trabalho apenas porque nenhum deles conhece "os donos ou os sócios". Paradoxalmente, defensores da revista também exortam (a despeito da alegada impessoalidade) que os empregados sejam tratados pelos empregadores como estes esperam ser tratados por aqueles (7). Seria esse parâmetro o bastante? Devemos concluir que não; ou que não se julgou ser demais oferecer instruções adicionais sobre como aplicar tal princípio, tais como: "...[as revistas] devem ser feitas com a devida cautela, serenidade e delicadeza... (8).
Não obstante, no conjunto de nossas fontes, a versão do princípio bíblico e suas "aplicações" têm menos visibilidade do que o direito à propriedade, manto com que, especialmente nas instâncias superiores do judiciário, cobre-se o empregador revistador. Mesmo a presunção de inocência não chega a arranhar o apregoado direito do empregador de proteger seu patrimônio.
Ainda que se insista (p.ex. 9) na "proporcionalidade" do procedimento da revista vis a vis a atividade e riscos do negócio do empregador, o patrimônio supostamente ameaçado jamais foi estimado em nenhuma das ações ajuizadas consideradas por Lemos em sua ampla discussão.
Notemos também que as estatísticas "absurdas" de furtos, que já serviram aqui à defesa do empregador, não indicavam nenhum valor relativo ao patrimônio de determinado reclamado, mas contavam ocorrências gerais, "inclusive" (mas não apenas) furtos de empregados que, mesmo que aparentemente "alamantes" considerando-se os milhares (ou milhões) de varejistas abrangidos, não convencem os mais perspicazes do montante em risco, para uma dada empresa, de modo a justificar a revista.
Apontar as fraquezas dos argumentos em prol da revista, contudo, não nos leva a fazer jus à "beleza, importânica e alcance" que esta questão, nos termos de Lemos, possui. Imprescindível, ponderamos, seria que houvesse também a consciência desses atributos pela maioria dos empregados. Como não soar um exagero a afirmação de que a revista é intolerável, quando os trabalhadores sequer reconhecem seu direito à privacidade e dignidade na relação de trabalho?
Enquanto o projeto de lei de Cidinha Campos e nossa observação direta indicam ser disseminada a prática da revista, as reações bem-sucedidas contrárias ao procedimento são consideradas pouco significativas, se não "isoladas", entre estas a que, no Tribunal do Trabalho do DF, condenou o Grupo Pão de Açucar a R$ 1 milhão de reais em indenização por danos morais coletivos, revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (10). A sentença ainda previa multa diária de 10 mil reais se houvesse novas revistas, o que se aplica a todas as unidades do grupo. Não logramos apurar se essa decisão foi posteriormente revertida em instâncias superiores.
No Paraná, Lemos constatou clara divergência entre as decisões do Tribunal Regional do Trabalho e o TST. O primeiro tem sido favorável ao pleito de indenização, enquanto o segundo tem revertido a decisão, julgando improcedente indenizar o empregado por danos morais.
Para ilustrar, vejamos, sucintamente, dois casos, extraídos de Lemos (11):
Primeiro caso:
Reclamada: Atacadão Distribuidora, 2005
A empresa foi condenada, em 1a. instância, a pagar indenização por danos morais.
A sentença foi mantida pelo TRT do Paraná: "...qualquer revista ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, invertendo a presunção que deve nortear a relação de trabalho, que é a de que o empregado merece a confiança do empregador e vice-versa".
Para o TST, contudo, "não se pode concluir, como fez o TRT, que qualquer revista feita pelo empregador em seus empregados ofenda o princípio da dignidade da pessoa humana". Com a unanimidade dos votos, essa instância concluiu que a revista é "procedimento legítimo"... e que "a maneira como é realizada a revista é que definirá a ocorrência ou não do dano moral". Explica ainda que somente justifica a indenização por danos morais "a revista em que o empregador extrapola o seu poder diretivo, mostrando-se [a revista] abusiva, por constranger os empregados, colocando-os em situações ultrajantes". Por fim, a revista não foi considerada abusiva ou vexatória pelo TST e, portanto, a empresa foi liberada do pagamento da indenização.
Segundo caso:
Reclamada: Hospital e Maternidade Santa Rita, 2007
Vara do Trabalho de Maringá acatou o pleito de uma auxiliar médica que trabalhava no centro cirúrgico daquele hospital. Para o juiz, o ato de revistar pressupõe suspeita objetiva de furto, algo que vai contra o princípio do Direito Penal, pois, para o hospital, todos os trabalhadores seriam culpados até prova em contrário. O juiz julgou, ainda, discriminatório o tratamento desigual dado aos empregados, já que médicos e diretores não estavam sujeitos à busca [revista].
O TRT do Paraná manteve a sentença condenando o hospital a indenizar.
O TST liberou o hospital da condenação, entendendo "não se tratar de revista íntima na acepção legal, nem haver desrespeito ou exposição de intimidade. Considerou, ainda, que somente a presunção de que a revista dos empregados configura desconfiança do empregador... não gera direito à indenização".
Ressaltamos que o TST alude à "revista íntima", expressão contida na CLT (Art 373-A, VI), optando pelo entendimento estrito dela, que contrasta com o teor do Enunciado 15, antes apresentado, e no qual se tem pautado o Ministério Público do Trabalho, ao não adotar "hermenêutica literal ou gramatical à expressão legal 'revista íntima'", mas entendendo que a expressão abrange também a revista pessoal e de pertences (12).
A persistência dessa divergência por certo tem reflexos no emperramento, desde 2007, do projeto de lei de Cidinha Campos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, após ter por fim superado resistência das comissões (13).
Para apoiar nossa avaliação de que tal divergência tende a se perpetuar, apresentamos outras duas evidências, mais recentes. A primeira, é o projeto de lei 5858/2009, de Sabino Castelo Branco, que tramita na Câmara dos Deputados (14) e propõe acrescentar, à CLT, alusão explícita à revista pessoal e aos pertences. O teor do projeto, contudo, não determina a proibição a todos esses tipos de revista, mas mantém as mesmas brechas que têm liberado o empregador da indenização por danos morais nas decisões do TST, adicionando apenas que tais revistas deverão ser autorizadas por convenção ou acordo coletivo de trabalho. Introduzindo clara hesitação, o teor do projeto acrescenta que, "de qualquer forma", as revistas só serão permitidas se não puderem ser garantidas por outro tipo de controle (eletrônico, etc). Isso, nos parece, enfraquece decisivamente o texto, em vez de defender a proibição das revistas. Não faltam, por certo, outros tipos de controle, mas a brecha se abre com o termo "garantidas". O empregador poderá facilmente alegar - como já tem ocorrido - que tais controles alternativos não são eficazes o bastante, ou seja, não garantem a ele a prevenção de perdas.
A segunda evidência recente que ora apresentamos remete ao importante Grupo Santander, que noticiou em seu site, em novembro de 2009, decisão do TST que, favorável à revista, mantém os termos de decisões anteriores dessa instância, já apresentadas aqui. Valioso é notar que o título da postagem, muito curiosamente, apresenta um erro, em que TST é trocado por TRT. Assim, lê-se: "TRT autoriza revista de pertences de funcionários", o que é frontalmente oposto ao teor da postagem, que diz:
O Regional não admite nenhuma modalidade de revista e sugere a adoção de monitoramento por outros meios de segurança, a exemplo de câmeras no ambiente de trabalho. Para o TRT, a revista, ainda que visual dos pertences do empregado, desrespeitava o direito à intimidade do trabalhador. (15) (grifos nosos)
O lado "em desvantagem" - e que, conforme argumentamos, tende a assim se manter (Ministério Público do Trabalho, Tribunais primeira instância e Regionais, professores e outros especialistas) - pauta-se no direito à privacidade, garantido pela Constituição Federal.
Conforme ainda Lemos (16), a procuradora Sandra Lia Simon, em sua obra A Proteção Constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado, de 2000, afirma que os objetos, bens e locais reservados ao empregado pelo empregador gozam de proteção insculpida no Art 5o., inciso XI da Carta, não podendo sofrer revista, exceto se houver flagrante delito ou determinação judicial.
Diante de tal firme e consubstancial parecer, observamos nova estratégia por parte dos opositores a ele, sendo as revistas, desta feita, subordinadas a outros "condicionantes". Como quer a nova artimanha, a proteção irretorquivelmente apontada por Sandra Simon estaria sujeita ao "confronto entre os princípios constitucionais relacionados ao direito à propriedade [empregador] e ao direito à intimidade [empregado]" (17).
Podemos afirmar que "confronto" é exagero, uma vez cientes que estamos de que o TST tem dado plena acolhida ao direito à propriedade, mesmo posteriormente à obra da promotora Sandra (2000) e do Enunciado 15 (2007), também já citado aqui. Além disso, revertendo decisões de outras instâncias, o TST não é dado a procurar considerar objetivamente os indicadores de "proporcionalidade" entre revista e risco e de "razoabilidade", admitindo toda e qualquer revista que, segundo o próprio TST, o empregado falhe em provar ser "íntima", o que sugere, por outro lado, que, caso o TST condene uma revista, a situação teria necessariamente chegado a tal ponto que, convidando o escândalo, a autorização para funcionamento do estabelecimento do empregador teria de ser reavaliada pela prefeitura, em decorrência.
Isso, contudo, não encerra toda a dificuldade para o avanço na questão. O tal confronto entre os dois princípios não se mostra auspicioso também por outros fatores. Lemos argumenta que, sendo ambos constitucionais, não permitem que cheguemos a uma solução por meio de técnicas previstas para dirimir conflitos de normas. Ou seja, não sendo concebível o desempate, o próprio Lemos abandona o "confronto" e conclui que "é preciso proteger tanto o direito do empregador em blindar o seu patrimônio, quanto o direito do empregado à sua dignidade... de forma que um exista de modo a não violar o outro". Simples?
Fácil arrazoar; impossível de fazer valer.
A divergência jurisprudencial que já apontamos, abrangendo decisões do TRT e do TST, revela que ou se protege um, ou se protege o outro direito.
Apesar de tão ampla discussão, percebemos, neste ponto, que uma constatação primordial ficou de fora. Nenhuma de nossas fontes acusou o fato de que, por todos os ângulos considerados, a perda do empregador - que as revistas pretendem coibir - é sempre e tão somente possibilidade, qualquer que seja a decisão judicial. Por seu turno, o empregado resta sempre - e indubitavelmente - revistado, lesado em seu direito à privacidade, o que o TST não explicitamente nega, "apenas" determina não ensejar indenização, porque "dano não teria havido" (embora, reiteramos, tenha havido a violação do direito do empregado à intimidade).
O dano é simplesmente considerado inexistente porque... Os termos de Casagrande magistralmente completam o pensamento: ...porque "admite-se a ilegalidade, mas prega-se a tolerância... ou seja, [há] o desprezo pelo princípio da legalidade em favor da prevalência de costumes culturais baseados numa moral bastante gelatinosa" (18). Esses termos ecoam as descrições do comportamento balizado pela estágio inferior de desenvolvimento moral.
Está associado a isso a prevalência do argumento de preservação do patrimônio, na defesa do empregador em ações de danos morais por revistas. Desponta claramente a preocupação com o patrimônio, e não com a vida de pessoas. E patrimônio, entenda-se, também diante dos dados dos processos discutidos, são artigos de varejo geralmente de baixo valor, e não algo que envolva sigilo industrial, etc.
Assim, não é levianamente que Casagrande arremata: "...em fase dos valores da Constituição de 88, a defesa do 'direito' do empregador em proceder a revista sobre o corpo de empregado e seus pertences só se explica pela permanência culturalista de uma triste herança da escravidão, que não podemos mais tolerar no atual contexto democrático de pleno respeito aos direitos civis"(19). Mais preciso seria grafar que não devemos tolerar tal procedimento, a menos que de fato desprezemos tal contexto.
Apontamos, para enriquecer essa explicação, a provável influência de mais um fator, este estritamente pragmático, que pode estar contribuindo, embora mais veladamente, para que se mantenha "justificada" a persistente vigência do procedimento de revista ao empregado: a preservação da validade da prova, em caso de verificação de delito.
À luz do que argumenta Ivan Alemão, professor de direito do trabalho e juiz, uma vez que se condene ilícita a revista, a prova eventualmente obtida por meio dela não seria válida:
Naturalmente, quem acredita que a revista é ilícita, como nós, chegará à conclusão de que [a] prova [por ela produzida] não deve ser admitida... o que, [antes da Constituição]...já era previsto no art. 332 do CPC. (20)
Por fim, fazemos com que toda a extensa e pouco consistente - mas majoritária - preleção aqui analisada, de inspiração antes autoritária do que gerencial, humanista ou tão somente justa, voltada para a defesa do lado mais forte, abertamente doutrinando sobre formas "não lesivas" de um ato condenado à luz da Carta, receba, adiante, o golpe final, com um argumento simples, mas que, legítimo em todos os sentidos, se volta não para as "formas aceitáveis" de violar o direito de intimidade, mas para uma forma de não violar tal direito, enquanto zela também pelo patrimônio do empregador.
Desferimos tal golpe recorrendo a argumento de Ivan Alemão que, a nosso ver, com ele deixa sem mais defesas, sejam mais ou menos marotas, o empregador revistador:
Entedemos que cabe ao empregador prevenir eventual dano material ou prática delituosa, e não reprimir, já que não possui autoridade para tal... Se o empregado é visto pegando um bem da empresa sem permissão, pode ser advertido e repreendido no ato. Muito dferente é não haver a vigília e sim a comodista, barata e preconceituosa revista... O objetivo da vigília é observar o patrimônio da empresa, diferente da revista, que é observar o lado íntimo do empregado. (21)
Ressalvamos, nesse quase irretocável raciocínio, que o fato de ser "barata" pouco, ou nada, explica a opção do empregador pela revista. Uma vez que são ora patentes os vultosos gastos com sistemas alternativos, deveria causar-nos perplexidade a persistência da revista. E, mais ainda, a dos furtos.
Com esta discussão, seremos levados, quase certamente, a trocar a indiferença e os costumes, pelos frutos do questionamento, a tempo também de impedir que os abusos consagrados da revista, que já vêm contaminando a vígilia, tornem esta igualmente condenável pela ótica humana e legal.
Da observação direta, temos que, no varejo, já é comum o mesmo segurança que revista empregados também vigiar. Vigiar os consumidores. Nossas fontes não tratam de algo que já alterou profundamente o ambiente de grandes pontos de varejo: a presença do segurança empoderado.
Em estabelecimentos 24 horas, ele tomou o espaço do gerente ou encarregado. Em nada se assemelha aos seguranças de agências bancárias, há algum tempo perturbados com pedidos de informação. Este é um segurança empoderado; é pró-ativo. Dá atenção a clientes, atendendo necessidades destes que vão muito além do concebível para sua função. Como cliente, observei que tais seguranças são respeitados como líderes pelos funcionários. Um deles, para minha total surpresa, comandou para os caixas do supermercado de que ele tomara conta, literalmente: "Vamos dar uma agilizada, gente"! Dois dos caixas confirmaram para mim, pouco depois, que a ordem tinha vindo de um vigilante. Um desses caixas, ao me ver pasma diante da confirmação, emendou: "Ele é legal"!
Outra ocorrência: não havia um colaborador na padaria. O mesmo vigilante, por iniciativa própria, foi até aquela seção, passou para o outro lado do balcão e, sem nenhum cuidado esperado com higiene, ensacou uns pães para mim e os pesou, fingindo que não me ouvia quando eu insisti que a balança não estava calibrada. Insisti tanto que, então, ele berrou: "Não sei como calibrar"!
A brutalidade diante de uma limitação que não se quer admitir também pode matar - e já matou. Mas a revista aos empregados, segundo observei, é muito camarada. O empregado pode até ter queixas da revista, mas não do revistador direto, que invade espaços como pouco carreiristas "carimbados".
Já há pelo menos um ganho de causa para um policial que acumulava funções como segurança do Pão de Açúcar, que foi obrigado a reconhecer vínculo empregatício na justiça, sendo que o julgador ficou satisfeito apenas com as provas elementares, como horário fixo, regularidade. O que, então, esperar, inclusive no que concerne a reclamações trabalhistas, diante de tanto empoderamento, ainda "invisível" como maquinações terroristas?
O ambiente de trabalho, nesses locais, se alterou brutalmente - e nenhum outro estudioso parece ter percebido isso.
Não é o caso de apenas tomar todo o cuidado naquela hora, da revista, conforme recomendam, como vimos, alguns especialistas. A revista ao empregado vem, nos ambientes mencionados, favorecendo uma imprevista cumplicidade entre os diretamente envolvidos. Não é mais o chefe formal quem revista - mas há um novo chefe, que ri, brinca, troca fotos, com seus revistados. Revistados? Não, colaboradores de fato.
O empregado, reconheçamos, pode entrar com o pleito de danos morais pela revista... Não, não é, de fato, ele; é seu advogado quem o faz. Se isso não muda nada na arena judicial, na das relações de trabalho, faz toda a diferença.
Parece-nos que, neste ponto, nossa análise mostra-se especialmente relevante e original - bem como nosso alerta: a revista saiu do controle do empregador, com consequências duradouras e perturbadoras, ainda ignoradas até mesmo por grandes varejistas.
Enquanto o empregador engendra artimanhas (o segurança terceirizado é uma delas) para se livrar da indenização a empregados por danos morais, deixa-se influenciar por estatísticas "alarmantes" de furtos, acaba processado também por danos a consumidores - todo o aparato de segurança tem de mostrar ao menos um ou outro delito -, a essência de seu negócio padece indiferente às câmeras. E, pior, longe dos olhos dele, inquestionável responsável perante toda a sociedade.
Ao assim encerrarmos esta perquirição, que foi norteada principalmente pela questão indireta embutida no título, que nos parece ter sido bastante bem respondida, considerando os limites deste espaço, sugerimos nova leitura da citação de abertura, de modo que, ora convencidos do atraso ali mencionado, nos sintamos, por outro lado, prontos para construir ambientes de trabalho em que os desvios de alguns empregados, ainda que meramente "difusos", não determinem condições desviantes que de fato importam por - além de afetarem os balanços - lesarem profundamente aqueles que, certamente a maioria, não podem prescindir, para sua produtividade e realização, de vínculos sólidos e livres de entraves, numa das arenas mais relevantes da vida, precisamente a do trabalho.
Na falta desses vínculos, em harmonia com a estrutura da empresa, vínculos-aberração germinam, aproveitando-se do solo que resta, e podem, em pouco tempo, alterar toda a paisagem. Então, alguns correm atrás, lamentando: "A coisa pegou de um jeito"...
NOTAS
(1) ALEMÃO, Ivan, "REVISTA DE EMPREGADOS: OBTENÇÃO DE PROVA POR MEIO ILÍCITO", 31/05/2010. Disponível em:
http://www.uff.br/direito/
(2) LEMOS, Alessandro Medeiros de, "Revista de Pertences de Empregados: delineações doutrinárias e jurisprudenciais", 06/04/2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/
(3) Segundo dados da Abrafarma (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias ), em 2007 as redes de farmácias gastaram R$ 35 milhões em soluções segurança para reduzir os furtos de mercadorias, que totalizaram aproximadamente R$ 42 milhões no ano passado.BOLETIM INFORMATIVO SOBRE O SETOR FARMACÊUTICO 5 Jun 2009. Disponível em:
http://archiver.mailfighter.
(4) "Furto interno representa 25% das perdas no varejo", 04.07.2006. Disponível em: http://www.consultaremedios.
(5) Furto representa 38% das perdas do varejo no Brasil, NUCLEO DE ESTUDOS DO VAREJO - ESPM, 28/08/2009. Disponível em:http://varejo.espm.br/2009/
(6) Lemos, op cit
(7) idem
(8) RODRIGUEZ, Américo Plá, Curso de Direito doTrabalho, apud Lemos, op cit
(9) LEMOS, op cit
(10) "O grupo Pão de Açúcar foi condenado...", Câmara & Câmara advogados, 10/10/2009. Disponível em:
http://camaraecamara.
(11) LEMOS, op cit
(12) idem
(13) Projeto de Lei n. 2433/2001, ALERJ, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.
Acesso em: 07/06/2010.
(14) Projeto de Lei PL-5858/2009, Câmara dos Deputados. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/
(15) "TRT autoriza revista de pertences de funcionários", Santander Empreendedor - Legislação. Disponível em: http://www.
(16) LEMOS, op cit
(17) idem
(18) CASAGRANDE, Cássio, "Não há norma que permita revista íntima a empregados". [Anteriormente publicado também sob o título "O Direito à intimidade do empregado e revistas no local de trabalho"]. Consultor Jurídico, 31/05/2005. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2005-mai-31/nao_norma_permita_revista_intima_empregados. Acesso em: 07/06/2010.
(19) idem
(20) ALEMÃO, op cit
(21) idem