Tuesday, September 28, 2010

Colunista da Folha projeta visão negativa da mulher em leitura de Chesterton

Ocorreu diversas vezes durante minha pesquisa de doutorado: quando lia o original, descobria que o que reina sobre ele é falso.


Desta vez, desconfiei de que Chesterton tivesse de fato alguma afinidade com as ideias de Luiz Felipe Pondé, expressas ontem em sua coluna na Folha e que teriam, segundo o colunista, fundamentação em Chesterton. Conferi e confirmei: o colunista distorce brutalmente o ensaio de Chesterton a que alude para, uma vez mais, defender uma visão pavorosamente mesquinha da mulher.


Tal constatação resultou na tese abaixo, que já enviei para a ombudsperson do jornal.


 Para quem não tem acesso à Folha online, Pondé tem agora seu blog, em que o artigo que critico está disponível: http://luizfelipeponde.wordpress.com.

A crítica ficou inevitavelmente um tanto extensa, porque eu não poderia simplesmente julgar, sem demonstrar. Incluí trechos do original do ensaio de Chesterton, que baixei da internet, do site do Project Gutenberg. 

Para não parecer pesada demais, omiti, na crítica enviada ao jornal, uma parte do ensaio que contribui para se apreender a profundidade do pensamento de Chesterton. Enfrento este trecho aqui (os grifos - negritos - são meus): 


Her husband thirsts for the crime egotistically and therefore vaguely, darkly, and subconsciously, as a man becomes conscious of the beginnings of physical thirst. But she thirsts for the crime altruistically and therefore clearly and sharply, as a man perceives a public duty to society. She puts the thing in plain words, with an acceptance of extremes. She has that perfect and splendid cynicism of women which is the most terrible thing God has made.

O ponto crucial para interpretar este trecho - cynicism é um falso cognato - é perceber por que Chesterton, como homem, declara que vê em tal cynicism - e não nas mulheres - a coisa mais terrível que Deus fez. Pondé quase certamente tomou "mulheres" em vez de "cynicism" como o produto mais terrível do Criador, o que se alinha com sua visão muito negativa da mulher, expressa em diversas ocasiões, muitas delas na sua coluna na Folha.

Cynicism não é cinismo. É um tipo de atitude de "prevenção" no sentido popular em nossa cultura, de desconfiança por julgar que ninguém pensa nos outros, mas só em si. Para Chesterton, essa atitude não é negativa em si; no casamento, ela influencia o homem e, no que concerne ao casal Macbeth, ela determina o assassinato do rei por Macbeth.

Ainda não sei como traduzir cynicism em uma única palavra.
 
Atingindo a variante "perfeita" nas mulheres, tal "cynicism,"esplêndido" para Chesterton, é a coisa mais terrível, por estar na mulher e se "derramar" sobre o homem numa relação de casamento de fato, expondo uma atitude mais mesquinha no homem. Portanto, em absoluto contraste com Pondé, Chesterton não tem na mulher uma manipuladora egoísta. Muito ao contrário.

Claro que vou preferir a visão de Chesterton, sendo eu mulher. Mas a questão aqui não é de preferência, sequer de dizer quem está "certo", se Pondé ou Chesterton. O ponto que norteia minha crítica é que Pondé distorce Chesterton, para fazer deste um "eco" seu. Isso não dá, de modo algum.

Chesterton, como homem, sente tal cynicism como terrível não por se sentir "um miserável" e ser "destruído por um simples olhar feminino", sentimentos esses de Pondé.  O "terrível", para Chesterton, decorre de ele, com tal cynisism, ter consciência de seu egoísmo, em contraste com o senso de dever para a sociedade com que sua esposa persegue o mesmo objetivo - matar o rei. Sua coragem é assim apequenada diante da da sua esposa.

Essa e outras preciosidades do ensaio de Chesterton são atropeladas no ensaio de Pondé. Veja a seguir como isso se dá, lendo a crítica que enviei ao jornal hoje.



Ontem a coluna de Luiz Felipe Pondé apresentou erros de português, que foram além do uso de "pra" (para) e da "rebeldia contra as vírgulas" - empregadas ao avesso das regras -, talvez em tentativa de paralelo com a rebeldia de Saramago contra os pontos finais, aliada a evidente, e aceitável, opção pela informalidade. Contudo, parafraseando o próprio Pondé, fica uma questão: qual a medida certa da transgressão (int)

Estava prestes a escrever para Pondè, mas vou aproveitar esta resposta, pedindo-lhe que encaminhe este meu comentário. Além disso, dada a gravidade da distorção de obra de Chesterton que Pondé ainda empreende, o que por fim constatei, peço que publique, se não meus termos, ao menos uma reparação da Folha, ou do próprio Pondé.

Primeiro, são estes os erros de forma:
a) "onde", no segundo parágrafo, não cabe, mas "em que", "na qual"...
b) "lembre de", no último; lembre-se de que.
c) "lhe destrói", também no último. Se houvesse outro objeto, direto, caberia o lhe, como, p.ex., em "lhe destrói o ego".

Ainda, não acho que muitos tenham entendido estas expressões: poemas neandertais e fake, no contexto.

Quanto ao conteúdo, fiz anteriormente crítica a argumentos deploráveis de Pondé envolvendo a mulher, que são frequentes em sua coluna. Novamente, Pondé afronta ao escrever que "ela é sim muito feminina no modo de conduzir seu marido para o que ela quer", alegando que recorre ao "gigante" Chesterton para ajudá-lo nisso. Aqui, o erro é imperdoável.

Baixei da internet o conto de Chesterton - The Macbeths. É o primeiro da segunda parte "Livros e escritores específicos", da coletânea Spice of Life. E é isso o mais importante desta minha critica: Pondé distorce brutalmente a obra de Chesterton, distorção que, em decorrência de ser leitora regular de sua coluna, sou capaz de ver em função da sua visão doentia da mulher, principalmente no que tange à relação com o homem.

Tal ainda é o menor. Mais temerário é passar tal visão adiante, como se fosse do tão brilhante Chesterton, uma vez que  praticamente ninguém irá mesmo ao original, e menos ainda o fará sendo capaz de uma leitura de fato.

Como quase ninguém é capaz de ler de fato um texto com as características do de Chesterton, as pessoas que "correrem os olhos" pelo conto mencionado por Pondé apenas tenderão a "ler" nele o que Pondé escreveu, analogamente ao que o próprio Pondé empreendeu, ao "ler" Chesterton contaminado por sua "ferida", em que, segundo ele, Shakespeare "põe o dedo". Uma lástima sobre outra pior.

Sei do status dele, de palestrante vip em tempos brega, PhD, professor de pós, etc. Mas isso não isenta ninguém, muito ao contrário. Um doutor, mais do que outros, deve ser capaz de admitir erros e aprender.

Podemos ser informais, temos o direito de nos expressar, mas Pondé é avesso a críticas - o que já demonstrou a mim. E parece que não percebe que não há direito em fazer menção  frontalmente errônea a outra obra e, depois, ser apenas defensivo.

Compare o tom e conteúdo do texto de Pondé em relação ao de Chesterton:

Pondé:
 
A análise de Chesterton é interessante porque aponta um traço da relação mulher-homem típica da vida real.
Qual relação? (A relação é a mulher-homem. A pergunta deveria ser: Que traço (int)) Sabe-se que num dado momento Macbeth entra em crise e recua na certeza de cometer o assassinato. Sua esposa, então, o convence a continuar no projeto, “motivando-o” da forma correta. E qual é essa forma? Desafiando sua virilidade e coragem.
Aqui Shakespeare põe o dedo na ferida: o homem morre de medo de ser fraco diante da mulher. Chesterton defende Lady Macbeth da acusação comum de ser “pouco feminina” dizendo, com razão, que ela é sim muito feminina no modo de conduzir seu marido para o que ela quer: que ele tome o trono da Escócia como prova de sua coragem e virilidade. Mentiras bonitinhas à parte, nada mudou: ou o homem é “forte” ou não vale nada.

No texto, incontestavelmente, Pondé propõe que Lady Macbeth é feminina, muito feminina, porque manipula seu marido "da forma certa", visando ao que ELA quer. Claramente, Pondé atribui à Lady um caráter egoísta e que só vê valor no seu marido - "nada mudou" -  se ele se mostrar forte, matando o rei. Pondé, em outra parte do texto, aponta que Macbeth se dá mal, morre. Mas não menciona o fim da Lady. Pondé claramente ressalta que a feminilidade - portanto extrapolando para a maioria das mulheres - reside em tal ardil manipulação por egoísmo e por ter consciência de que o homem "morre de medo de ser fraco diante da mulher". Nada disso minimamente ecoa Chesterton.

Em abissal contraste também ao tom do conto deste, Pondé arremata neuroticamente: "Quando você se sentir miserável porque um simples olhar feminino lhe (sic) destrói, lembre (sic) de Macbeth".

Suzana, você simplesmente acreditaria nesta minha afirmação: de que Chesterton diz no conto que Macbeth e sua esposa salvam a alma um do outro (int)
Acato sua desconfiança. Vamos, portanto, à obra de Chesterton (no original), na parte relativa à relação de Macbeth e sua esposa, que entremearei com meus comentários.

Chesterton:

Macbeth, in short, has any amount of physical courage, he has even a great deal of moral courage. But he lacks what may be called spiritual courage; he lacks a certain freedom and dignity of the human soul in the universe, a freedom and dignity which one of the scriptural writers expresses as the difference between the servants and the sons of God.
But the man Macbeth and his marked but inadequate manliness, can only be expressed in connection with the character of his wife.


Chesterton qualifica a masculinidade de Macbeth como "inadequada", e é explícito ao apontar o problema assim (em vermelho): falta à Macbeth a "coragem espiritual", que Chesterton distingue da coragem física e da moral. Tal coragem  diferencia, segundo um dos escritores da escrituras, "os servos dos filhos de Deus". Ainda para Chesterton, tal dimensão da coragem tem a ver com uma "certa liberdade e dignidade"... que ele acaba atribuindo (trecho adiante) à esposa de Macbeth. E é por tal coragem ímpar - adianto - que Chesterton a defenderá da pecha de "masculina". Sim, é só elogio do mais "rasgado"  à Lady, em nada de fato "ajudando" as proposições negativas de Pondé.

Ainda do trecho acima, Chesterton, apesar de ter apresentado  definições para "coragem espiritual",  por fim propõe que a masculinidade de Macbeth (caracterizada principalmente pela ausência da "coragem espiritual") só pode ser expressa em conexão com o caráter de sua esposa. Em frente.

Masculine women may rule the Borough Council, but they never rule their husbands. The women who rule their husbands are the feminine women.

Este é um trecho que ajudou Pondé a confirmar sua visão trágica da mulher, enquanto ele empurrava tudo que tal visão não quer ver para debaixo do tapete. E enganava muitos leitores. Chesterton afirma categoricamente que as "mulheres que regem seus maridos são as mulheres femininas (e não as masculinas). Mas a ideia de Chesterton para "reger" os maridos não é nem de longe a que Pondé expressa em seu artigo, na coluna da Folha.

O que foi para debaixo do tapete (int)

I am entirely in accord with those who think that Lady Macbeth must have been a very feminine woman. But while some critics rightly insist on the feminine character of Lady Macbeth they endeavour to deprive Macbeth of that masculine character which is obviously the corollary of the other.

A ideia de Chesterton é mais complexa do que a dos demais "críticos"... Chesterton totalmente concorda que Lady Macbeth foi uma mulher muito feminina. MAS os críticos que insistem nisso se esforçam em privar Macbeth do caráter masculino que é, obviamente,  consequência direta daquela feminilidade. Esmiuçando ainda mais: A feminilidade da Lady responde pelo caráter masculino de Mac. Esta proposição é algo complicada, ou, pelo menos, não óbvia para nós como Chesterton diz ser ela para ele. Pondé, ao que parece afoito em ver a nuance que a ele convinha, interpretou isso como manipulação para a Lady conseguir o que ela queria. Pobreza total. Chesterton derrubou - antes de Pondé construir - tal interpretação.

The dispute that goes on between Macbeth and his wife about the murder of Duncan is almost word for word a dispute which goes on at any suburban breakfast-table about something else. It is merely a matter of changing "Infirm of purpose, give me the daggers", into "infirm of purpose, give me the postage stamps". And it is quite a mistake to suppose that the woman is to be called masculine or even in any exclusive sense strong. The strengths of the two partners differ in kind. The woman has more of that strength on the spot which is called industry. The man has more of that strength in reserve which is called laziness.

Após elogiar Shakespeare por superar a si mesmo no que concerne ao retratar um casamento (não acima), Chesterton prossegue para descrever mais profundamente a relação entre Macbeth e sua esposa, que ele chama de "estranha" mas ao máximo depurada na peça em questão. Tendo afirmado a generalidade da essência do embate naquela relação, Chesterton frisa ser um erro supor que, além de masculina, a mulher seja forte em qualquer senso exclusivista. Isso contraria Pondé absolutamente. O homem, para Chesterton, não está à mercê da "motivação" da mulher para que ele faça o que ela quer. 

Ambos são fortes, sendo que a força difere em sua natureza: a mulher detém mais daquela força "ao vivo" (on the spot), que é chamada iniciativa, enquanto o homem detém mais da força "potencial" (in reserve), que é chamada apatia. A tradução é minha. Certo é que "industry" não pode ser tomada como "manipulação egoísta", nem "laziness" por "medo de parecer fraco". O egoísmo não cabe de modo algum na obra de Chesterton, mormente no trecho a seguir, em que o autor eleva aquela força feminina aos píncaros da beatitude.

But the acute truth of this actual relation is much deeper even than that. Lady Macbeth exhibits one queer and astounding kind of magnanimity which is quite peculiar to women. That is, she will take something that her husband dares not do but which she knows he wants to do and she will become more fierce for it than he is. For her, as for all very feminine souls (that is, very strong ones) selfishness is the only thing which is acutely felt as sin; she will commit any crime if she is not committing it only for herself.

Chesterton fala da grandiosidade peculiar às mulheres, e  propõe que quem quer não é ela, mas ele. Ela compra a ideia dele e, na busca por concretizá-la, o único pecado é o egoísmo, "é fazer algo apenas para ela:"..."ela cometerá qualquer crime, contanto que não o cometa somente em sua causa".
Pondé é incapaz de assimilar isso e, fica demonstrado, totalmente distorce a obra de Chesterton. Este encerra o conto enaltecendo a coragem de ambos, mas com um quê a mais para a de Lady Macbeth. Em vez de aterrorizar o leitor com a sensação de "destruição" por um "simples olhar feminino", Chesterton enaltece a complementaridade homem-mulher, em especial a do casal Macbeth, o "mais casado de todos". No final do conto, Chesterton declara que esse casal, em todo o mundo da ficção, "está só", ou seja, é o único no que concerne a "estar casado de fato".

Assim, diante do "apocalíptico" desfecho do artigo de Pondé, exorto o leitor a não se sentir destruído, tampouco lembrar--se  do Macbeth de Pondé, mas a se lembrar do Macbeth de Chesterton.

Macbeth e sua Lady estão, segundo Chesterton, no céu, graças à coragem de sua esposa. Não é possível dar outra interpretação fiel ao conto. É nesse sentido que a masculinidade de Macbeth torna-se consequência da de Lady Macbeth, que ativa a coragem "adormecida", latente, de seu esposo.

E, se alguns homens de fato temem ser fracos diante da mulher, é porque falta-lhes algo mais. Possivelmente, a coragem de olhar nos olhos da mulher e ver a si mesmos, não em sua fraqueza, mas justamente no que renunciam à sua própria coragem. 

Eis o trecho final do conto que, além de confirmar o  acima, não esconde que Lady Macbeth também mata a si:

Of a man so male and a woman so female, I cannot believe anything except that they ultimately save their souls. Macbeth was strong in every masculine sense up to the very last moment; he killed himself in battle. Lady Macbeth was strong in the very female sense which is perhaps a more courageous sense; she killed herself, but not in battle. As I say, I cannot think that souls so strong and so elemental have not retained those permanent possibilities of humility and gratitude which ultimately place the soul in heaven. But wherever they are they are together. For alone among so many of the figures of human fiction, they are actually married.

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