Não basta termos eleições para que se instalem a justiça, o respeito pela liberdade e a igualdade dos indivíduos.
À falta de ideias, soma-se uma mentalidade que jamais foi democrática, mesmo em muitos representantes da elite. Ilustração exemplar disso é o destaque que teve, há semanas, na mesma Folha, a "indignação" de um economista, morador dos Jardins que, de seus oito tapetes persas, perdeu quatro. Ele fazia questão de frisar que não morava num Jardim da periferia, mas nos nobres Jardins, e que sua perda e outros transtornos eram inconcebíveis... porque pagava 25 mil de IPTU.
Você se juntaria a ele, alegando que paga milhares em IPTU para acabar perdendo sua nobre tapeçaria?
Você não é digno da democracia!
Você não sabe o que é isso. Democracia não é ter mais privilégios porque se paga mais impostos. A ideia de pagar mais impostos, numa democracia, não é para se ter "direito" a mais e se achar mais do que os outros. A ideia democrática dos impostos é justamente uma forma de atenuar a desigualdade - e não de marcá-la. Paga-se imposto de acordo com a renda, o valor do patrimônio, para que todos, todos tenham o mesmo bem-estar público (segurança, etc.). Perder um sofá rasgado - e o único - ou perder uma coleção de tapetes persas: dá no mesmo; a perda é - deveria ser - uma só: a decorrente do uso ineficaz, indevido do montante dos impostos.
De tão tortos no nosso pensar, alheio ao ideal democrático, achamos ótimo um Bolsa Família: "alguém-finalmente-está-fazendo-algo-pelos-pobres!" Está mesmo?
A democracia sem ideias
ANÁLISEGUILHERME MALZONI RABELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA - 24.03.2010 p. A7
Toda a discussão política no Brasil parece resumir-se a quando vai ser lançada a campanha deste e daquele candidato e que obras serão inauguradas até as eleições. Essa história já é bem conhecida, e ninguém espera algo de novo.
Há tempos, a democracia transformou-se numa panaceia universal capaz de curar todos os males. Do PC do B ao DEM, todos têm por grande objetivo defender, reforçar, aprofundar a democracia no país e procuram fazer isso no canteiro de obras ou na televisão. O que há de errado? Que no Brasil não se debatem ideias. A política passou a ser assunto exclusivo de engenheiros e publicitários. Ou seja, de comadres.
Não se trata de esperar que o debate político chegue às insondáveis profundezas de Habermas. Trata-se apenas de discutir aquilo que é necessário para o bom funcionamento da democracia, porque ela não funciona sem ideias.
O problema está em pressupor que a democracia seja em si mesma um valor acima de toda a discussão, quando é apenas um sistema de governo. Na melhor das hipóteses, reflete os interesses imediatos da população, ou mais comumente o do partido que calhou de ser eleito. E como bem sabia Churchill, sistema de governo, por si só, não torna ninguém feliz.
Com a opinião nada singela de que é preciso "dar ao povo o que o povo gosta", elimina-se toda a questão valorativa. Não basta termos eleições para que se instalem a justiça, o respeito pela liberdade e a igualdade dos indivíduos.
As oposições esqueceram-se de que boas obras públicas não garantem boa democracia, e mais parecem um eco do que diz o governo. No curto prazo, a consequência é que o discurso de uns e outros passa a ser vazio, em torno de uma manipulável competência administrativa.
No longo, minam-se as bases do sistema democrático e instaura-se uma "ditadura da opinião única". Afinal, se as únicas diferenças são técnicas, não estaremos lidando com "farinha do mesmo saco"?
GUILHERME MALZONI RABELLO é presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE) e editor da revista "Dicta&Contradicta".