Este artigo está especialmente relacionado à postagem recente Síndrome do pânico e A Pergunta em Brasa - emperrando o motor da existência até com medicina supostamente natural -
Mídia farmacêutica:
sociedade de consumo e fabricação da loucura
Ariane P. Ewald
Dayse Marie Oliveira
extraído de:
http://www.projetoradix.com.br/arq_artigo/VII_49.htm
Resumo: Preocupando-se em compreender os mecanismos inerentes a uma sociedade de consumo e o processo de medicalização e banalização da existência apregoado na publicidade e veiculado em larga escala pelas indústrias farmacêuticas, este trabalho procura estudar os mecanismos utilizados pela indústria farmacêutica na divulgação dos seus produtos, mecanismos estes voltados, quase sempre, para um público leigo, tentando compreender a relação que se estabeleceu entre saúde e “remédio/mercadoria”, especialmente na busca de soluções instantâneas para problemas que podem ser unicamente de ordem psíquica.
Palavras-chave: Mídia farmacêutica, Sociedade de Consumo, Modernidade, Loucura
“Se há vários remédios receitados para uma mesma doença, podem estar certos de que a doença não tem cura”. Anton Tchekov
A busca pelo sentido da própria vida, o vazio existencial e a constatação da solidão, acentuada pelo nosso viver da modernidade, parece estar sendo uma das principais queixas que encontramos nos consultórios, aliada às crescentes dificuldades de estabelecer relacionamentos duradouros e amorosamente verdadeiros. De forma cada vez mais acentuada, buscamos soluções para nossos problemas existenciais e nosso sofrimento psíquico pelo menos de duas maneiras: primeiro pela mais avançada tecnologia, aqui incluído o arsenal psicofarmacológico e outras formas elaboradas pela ciência e ainda consideradas na visão de alguns, como eficientes, mais se importando com a precisão da técnica do que com o desdobramento da mesma sobre o ser humano; e em seguida pelo misticismo de todo gênero no qual podemos situar oráculos, bruxaria, duendes, cristais, etc.
Pressionado a assumir responsabilidades crescentes num mundo em permanente e rápida mudança, o “indivíduo incerto”[3] e fragmentado de nossa modernidade, mergulha na fadiga, insônia, ansiedade, indecisão, assimiladas a um quadro de depressão, que se naturaliza como modo de estar-no-mundo. Com a indústria farmacêutica avançando a passos largos numa cultura do consumo, no que é apoiada pelos procedimentos diagnósticos preventivos feitos pelas áreas “psis”, podemos perguntar, talvez, se são as doenças que criam novos medicamentos, gerando novos mercados de consumo, ou se são os produtos, com vistas a novos mercados, que criam as doenças?Algumas estatísticas recentes sobre a depressão, nos EUA, apontam para um mercado potencialmente lucrativo, especialmente quando se trata de “doenças” cuja “cura” não é prescrita em duas a três caixas de medicamentos, mas sim de um uso que se estende por toda vida: 9,5% da população norte-americana sofre de depressão crônica, o que equivale a mais ou menos 19 milhões de pessoas; destas, dois milhões são crianças (NIMH, 2000; SOLOMON, 2002).
A depressão é uma doença danada de cara”, afirma Andrew Solomon, em seu relato sobre sua experiência pessoal com a depressão. “Meu primeiro colapso custou a mim e ao seguro cinco meses de trabalho (...) Agora gasto cerca de 20 mil dólares por ano na manutenção de minha saúde mental, sem hospitalização. Mesmo a depressão mais simples exige pelo menos 2.000 ou 2.500 dólares por ano, e uma hospitalização de três semanas começa com 14 mil dólares”[4] (2002, p.332-3).
A “vida se psiquiatrizou” e se “medicalizou” (Pessotti, 2003 e Scliar, 1997), “graças”, afirma Pessotti, aos meios de comunicação de massa, à farta propaganda da indústria farmacêutica, [e] à difusão do DSM” (2003, p. 7). Nosso cotidiano, que é permeado de sensações agradáveis mas também é atravessado pelo desânimo, tristeza, decepção, frustração, perdeu o sentido do que chamávamos de “vida dura” para se transformar em diagnóstico de “depressão” (Pessotti, 2003, p. 7).
Em texto sobre a subjetividade forjada na modernidade (Ewald, 1997), retomo as categorias de velocidade e movimento que, nesta reflexão sobre cultura do consumo, são bem adequadas. Elas podem ser vistas aqui como pólos antagônicos à reflexão pois são amplamente matizadas pelas cores da “ação por impulso” e guiadas pela “emoção”. Tudo parece seguir uma seqüência automática em ritmo alucinado, como acontece nos fast-foods: “pague rápido, pegue rápido, passe rápido, coma rápido e retorne ao movimento” (1997, p. 50). Cultura do consumo e modernidade, portanto, se anunciam como temporalidade, como “o transitório, o efêmero, o contingente” (Baudelaire, 1995, p.859).
A cultura do consumo está inserida na lógica da modernidade cujos sinais (Ewald, 2000, 2001) estão ligados às conseqüências da Revolução Industrial e ao processo de expansão do capitalismo industrial; às novas máquinas e as novas tecnologias; à dinâmica entre o antigo e o moderno; à idéia de novidade; à crença irrestrita na evolução e no progresso; à antinomia barbárie versus civilização; a uma aceleração “subjetiva” do tempo; à velocidade; e à entronização do dinheiro que, gradativamente, passa a mediar todas as relações sociais. A partir disso, surge uma nova “sensibilidade moderna” que pode ser percebida por uma nova atmosfera de agitação e turbulência, de aturdimento psíquico com expansão das possibilidades de novas experiências e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e auto-desordem[5]. Gradativamente, como parte fundamental do desenrolar deste processo de construção dessa modernidade, forjou-se uma, cada vez mais sólida, “cultura do consumo”, que passou a se incorporar à lógica da sociedade e que exerceu um forte impacto no jogo das sociabilidades e das convivencialidades. Dentro desta lógica, o estudo de Colin Campbell (2001) sobre o movimento romântico e a nascente cultura do consumo, demonstrou a associação clara entre o “eu mereço” e o “eu consumo”.
O vazio existencial do qual falamos hoje, é parte da ausência de sentido, sentido que deveríamos criar, ação que lentamente abandonamos para dispormos de sentidos “prontos”, vendidos no comércio virtual, nos supermercados, nas lojas de departamentos, nos shoppings centers, ou mesmo dispersos pelos meios de comunicação. É resultado de uma prática e de valores contemporâneos, do modo de viver e de estar-no-mundo cujo sentido é consumido como um produto descartável. O sentido da vida, afirma Albert Camus (1989) logo no início de suas reflexões em O Mito de Sísifo, “é a questão mais decisiva de todas” (p. 24-5). A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem aqui não tem nenhuma importância, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl (2003). A rigor, continua ela, “o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. (...) Contra esse pano de fundo de ‘nonsense’, solidão e desamparo, nos constituímos numa dinâmica permanente de estabelecimento de laços, de relações que nos sustentam diante do outro e diante de si mesmo” (p. 4).
A tentativa do existencialismo, ao procurar confrontar o ser humano com sua realidade concreta, com seus desejos e suas limitações, perdas e ganhos, e com o próprio esvaziamento de sentido da vida, é chamá-lo para a ação, para a responsabilidade e as conseqüências do seu fazer cotidiano que acaba por gerar infelicidade e sofrimento, e que tentamos resolver hoje através de medicamentos.
Não podemos ignorar o “movimento” da singularidade de cada um, muito menos as pressões sociais sobre o modo de viver na contemporaneidade. Não podemos, portanto, como afirma Alfredo Bosi (2001), ignorar “os abúlicos (sem vontade) que se estendem no sofá do psicanalista e não pretendem levantar-se tão cedo, não por fé no método, mas pela tibieza acariciante de uma distração (...) [Estes], são ineptos mornos que querem e não querem agir, são impotentes precoces, sem amor, mas curiosos de sensações e de prazer” (2001, p. 410). Ao encantamento pelo mundo dado, o mundo da facticidade, como chamamos no existencialismo, contrapõe-se a descoberta da sua fragilidade, as contradições inerentes à vida, os processos de decisão e de responsabilidade, tempo em que se percebe que a vida se move porque você se move.
A medicalização da existência e do sofrimento psíquico nos reporta a este mundo estabelecido, o do “já pronto”, do imediato. Essa nova forma de olhar para o sofrimento psíquico é revelada em expressões usadas no nosso cotidiano como a que ouvi na televisão recentemente: Você é prozaqueiro?[6] Em 1994, quando o medicamento Prozac já havia adquirido o sinônimo de “pílula da felicidade” e arrecadava em torno de um bilhão de dólares anuais, falava-se de uma “geração Prozac”. Em parte isto hoje se tornou realidade à medida que este e outros medicamentos aparecem como “milagreiros”, e em parte porque se forma uma disposição para a banalização do seu uso: qualquer desconforto existencial é visto ou como uma pré-disposição para doença metal ou como a própria doença. A facilidade e a irresponsabilidade com que os diagnósticos são emitidos, acentuam o abuso do medicamento, pois eles são baseados num quadro de sintomas pré-catalogados por algum manual, afirma Pessotti (2003), que são tão diversos e suas combinações tão variadas. À medida que as pessoas são simplesmente “encaixadas” nestes quadros, que passam a “ser” a doença, continua ele, a cura está unicamente baseada na remissão dos sintomas. Desta forma, “o diagnóstico favorece a prescrição do fármaco que os abole. A resistência pessoal ao sofrimento e aos infortúnios da vida permanecerá intocada” (p. 7).
Essa discussão já tinha sido empreendida pelo psiquiatra norte-americano Thomas Szasz (1979, 1980), na década de 60. Seu foco principal, na época, era o modelo médico-psiquiátrico que transformava os problemas existenciais em problemas médicos. Seu argumento sobre a proposição de que a doença mental é um mito, estava relacionado a medicalização dos conflitos morais nas relações humanas. Quando os problemas pessoais são vistos pelo que realmente são, segundo este autor, desamparo, medo, inveja, raiva e tantos outros tipos de atribulações que nos assediam cotidianamente, estar “mentalmente enfermo” deixa de ser um refúgio e a responsabilidade do indivíduo pela sua conduta pessoal pode ser então enfrentada.
Seguindo, de certa forma, este caminho, mas partindo de outro tempo e lugar, Joel Birman, psiquiatra e psicanalista, no seu livro Mal-Estar na Atualidade (2001), também discute os fundamentos da psiquiatria. Logo de início, num de seus textos, ele afirma: “Como se sabe, a psiquiatria sempre se encontrou em posição incômoda no campo da medicina pois, pretendendo ser uma especialidade médica, nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica” (p.180). Para ele, a psiquiatria aparece como “falsa medicina” ou “pseudomedicina”, que busca incessantemente um fundamento para sua área que, até o momento, flutua entre as causas morais, estabelecidas por Pinel no fim do século XVIII, e as orgânicas, provenientes da psicofarmacologia e do discurso das neurociências. Da mesma forma, o sociólogo Alain Ehrenberg (2000) em seus estudos sobre depressão e sociedade, aponta como a psiquiatria se coloca entre o médico e o moral: “ela transforma entidades morais, das quais a pessoa é a responsável, em entidades médicas, que atuam nas pessoas” (p. 36).
A psiquiatria, para o psicólogo inglês Nick Heather (1977),
“retira essa responsabilidade dos pacientes psiquiátricos, na crença de que a experiência e o comportamento deles são determinados por algum processo patológico que age sobre eles e está, portanto, fora de seu controle. (...) [Desta forma,] a pessoa a quem acontece uma doença nada tem a ver com o assunto” (p.69-70).
Desta forma, pode-se perceber que há um certo esforço para que as pessoas considerem sua doença como uma coisa isolada do contexto pessoalmente significativo de sua vida (p.89) e a raiz dos problemas do viver de alguém, que está nas suas relações pessoais (Van den Berg, 1994) infelizes ou não, tensas ou não, etc., desaparecem completamente. Ela deixa de estar deprimida para ter uma depressão.
Há pelo menos duas maneiras de pensar sobre esse aterrador estado de coisas. Se o número de pessoas na população que parecem necessitar de psicotrópicos for considerado uma indicação do stress da vida moderna, não deveríamos estar fazendo mais para reduzir as fontes desse stress na sociedade, em vez de recolhermos as suas baixas depois que ocorreram? (...) Por outro lado, pode ser verdade que os especialistas têm encorajado as pessoas a considerar qualquer grau de desconforto emocional como algo intolerável que deveria ser imediatamente anulado; a infelicidade deixou de ser parte natural da vida e passou a ser um indício de que a pessoa requer tratamento. Se partirmos do princípio de que pelo menos uma parte dessa infelicidade é um reflexo da alienação na sociedade contemporânea, então é conveniente para o sistema que as razões sociais e econômicas subjacentes não sejam examinadas minuciosamente demais. (Heather, 1977, p. 92)
Como, a partir dos anos 50, a psicofarmacologia possibilitou criar um nova identidade para a psiquiatria e também um referencial “consistente” para sua terapêutica, gradualmente vê-se um distanciamento cada vez maior da psicoterapia, especialmente da psicanálise que até então havia sido forte aliada no campo da psicopatologia. Para Birman, a pretensão de se tornar científica embasada no discurso da neurociência, leva a psiquiatria a uma leitura do psiquismo reduzido a sua dimensão biológica, limitando o funcionamento da vida psíquica ao funcionamento cerebral. Desta forma, no campo da intervenção terapêutica, essa ação que corresponde a uma racionalidade puramente funcional, transforma as psicoterapias em elemento periférico, situado em segundo plano. Neste sentido, as diferentes modalidades de mal-estar corpóreo, os problemas do espírito como eram chamados, se transformaram em doenças mentais, em síndromes de todo gênero, colocando diante da psicofarmacologia um mercado gigantesco e lucrativo. Talvez seja bom perguntarmos se isso é reflexo de um silenciamento da subjetividade na sociedade moderna, ou se essa é uma proposta de silenciamento bioquímico do sofrimento psíquico.
Ao longo do século XX profundas mudanças ocorreram na área de psicofarmacologia, com reflexos diretos em todos os campos da medicina, onde a psiquiatria ocupou um lugar de destaque pela introdução de novas e potentes substâncias, apresentadas como “novos milagres” para cura ou controle de várias formas de distúrbios ou comportamentos. Estes medicamentos estabeleceram um rompimento com as formas tradicionais de se lidar “cientificamente” com a loucura. Tornou-se fundamental, para a indústria farmacêutica, um meio eficiente de divulgação de seus produtos, que atingisse não só os médicos, responsáveis pelo conhecimento e administração da medicação, mas também o público em geral que, a partir do “esclarecimento” dos sintomas apresentados nas propagandas dos medicamentos, poderiam vir a se tornar possíveis consumidores da mercadoria. Não se pode negar que a saúde mental tem sido vendida, desde então, sob a forma de pílulas que regem estados de alegria e euforia. Os anúncios dos medicamentos, protagonistas desse processo, associam imagens de bem-estar, alegria e sociabilidade aos seus produtos. Trabalham com as expectativas e o imaginário social que são atravessados pela crença da “cura” para seu sofrimento. Preocupados com esta questão, pesquisadores têm se dedicado a estudar esta relação entre as indústrias farmacêuticas e os médicos.
Em tese de doutorado defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ, Rita de Cássia Vieira (Mota, 2004) constatou que os médicos podem não conhecer verdadeiramente todas as características do medicamento que está receitando, pois eles estão se concentrando nas informações fornecidas pela publicidade do medicamento. Segundo ela, as informações farmacológicas incluídas nas propagandas, supostamente corretas cientificamente, foram comparadas com dados da literatura de referência e comprovou-se que existiam erros, ou mais freqüentemente, dificuldades em localizar os artigos fornecidos como base, quer por estarem mal indicados, quer por estarem mal traduzidos ou ainda por não existirem. Da mesma forma, Emília Silva e colaboradores (1999), já haviam indicado em estudo feito sobre as propagandas de medicamentos à classe médica em Brasília, que as deficiências encontradas na amostra destas publicidades[7] diziam respeito às informações sobre precauções, advertências, contra-indicações e reações adversas. Conclusão extremamente preocupante para os usuários das drogas indicadas por receituário médico nestas condições. Assim como para Rita de Cássia, Emília e colaboradores indicam a falta de tempo para o profissional se atualizar. Desta forma, o referencial do médico acaba por restringir-se ao folheto publicitário feito pela indústria farmacêutica.
Além da publicidade feita para a classe médica, há também a publicidade feita para o público leigo. Esse é mais um lado da mesma questão que pode, freqüentemente, banalizar o uso de medicamentos.
Preocupados com o uso racional de medicamentos, a Organização Mundial de Saúde - OMS (Cebrim, 2003) elaborou um documento procurando definir o uso irracional destes e, ao mesmo tempo, fornecer diretrizes de prevenção para este uso. Para a OMS, nas razões para o uso irracional de medicamentos, estão incluídos “falta de conhecimentos, experiências ou informação independente, disponibilidade irrestrita de medicamentos, sobrecarga de trabalho do pessoal da saúde, promoção inadequada dos medicamentos e vendas de medicamentos motivados pelo lucro” (p.38). Pode-se perceber que a OMS se preocupa com os mecanismos publicitários que atuam como mediadores da informação sobre os medicamentos.
O papel da publicidade, afirma Nelly de Carvalho (2002), “é tão importante na sociedade atual, ocidentalizada e industrializada, que ela pode ser considerada a mola mestra das mudanças verificadas nas diversas esferas do comportamento e da mentalidade dos usuários/receptores” (p.10). Ao olharmos para os folhetos publicitários distrubuídos pela industria farmacêutica, é impossível não perceber a relação estabelecida entre as imagens e a promessa inserida na mensagem escrita. O “sonho de consumo” de alguém diagnosticado como doente, é ficar melhor e feliz. Este “estado” de sentir-se bem é constantemente associado na mídia a imagens que correspondem hoje a um estado de alegria: pessoas rindo e falando muito, somado a um fundo musical que lembra a euforia do nosso carnaval. Estar rodeado de pessoas, rindo e brincando, passou a significar estar feliz e, conseqüentemente, a estar com saúde.
Em trabalho sobre comunicação, cultura e consumo, Everardo Rocha (1995) também analisa as pessoas dentro dos anúncios. Ali, como afirma um publicitário entrevistado por ele, “as pessoas seriam absolutamente resolvidas. Elas não necessitariam de psicanálise (...) os psicólogos não teriam muito trabalho (...). as pessoas de dentro dos mundo dos anúncios estão sempre vivendo o que desejam” (p.168). no anúncio, os dilemas existenciais desaparecem à medida que o cartão de crédito aparece. A felicidade passou também a ter a medida do seu crédito no Banco. O universo dos anúncios é também atemporal pois passado, presente e futuro se transformam em instantâneos, relação freqüente usada pela indústria farmacêutica. Nele, o impossível torna-se viável e num toque mágico sua vida se transforma.
No mês de maio deste ano, a revista francesa Sciences Humaines traz como reportagem de capa uma discussão sobre os “transtornos do Eu”, depressão, fobia, ansiedade. Este dossiê inicia com uma pergunta: “A depressão, a ansiedade, a fobia são cada vez mais freqüentes. Devemos, como está sendo a tendência, considerá-las como verdadeiras doenças ou elas são simplesmente a manifestação de eventualidades da existência e da vida em sociedade?” (2003).
O psiquiatra Henry Ey, em 1969, afirmava a loucura como uma “patologia da liberdade ou da vida em relação” vindo engrossar as reflexões de Ronald Laing e David Cooper sobre a questão da loucura.
É à questão da organização individual do homem que se remete a noção de doença mental. (...) [O nó deste debate] é o da natureza moral do conceito de doença mental. (...) ou se trata de uma realidade patológica natural, infeliz atenuação da responsabilidade do homem, ou se trata de um artefato cultural, escandaloso efeito da repressão social. Nos dois casos, é a liberdade do homem que está em jogo” (Ey apud Ehrenberg, 2000, p.298, nota 10).
Mal-estar ou doença mental? Pergunto novamente. Foucault já afirmava em 1961: “A loucura não existe senão numa sociedade” (1994, p. 169). Várias são as abordagens possíveis para tentar responder a esta questão. Talvez devamos apontar alguns pontos para reflexão. Compartilhando das inquietações de Thomas Szasz, devemos levar em conta que, em grande medida, a doença mental é uma construção social, extensamente analisada em seus livros[8], como também nos trabalhos do historiador Roy Porter, especialmente no livro História Social da Loucura, e nos do filósofo e historiador das ciências Yan Hacking, que em dois de seus trabalhos – Múltipla Personalidade e Les Fous voyageurs – indica como as “doenças mentais” podem ser construídas socialmente e como elas respondem a questões culturais e existenciais de um período.
Complementando esta perspectiva, podemos incorporar as reflexões do sociólogo Alain Ehrenberg, (1995, 1998) que aponta para a nossa estrutura social, fundada na responsabilidade e na iniciativa, como sendo o local onde a doença mental adquire forma. Para ele, as dificuldades da vida cotidiana hodierna, como fadiga, inibição, insônia, ansiedade, são inerentes a uma sociedade cuja norma de funcionamento e de organização social é depositada sobre o indivíduo, exigências às quais ele não está preparado para lidar. A doença mental, para este autor, é a contrapartida do esforço que cada um necessita fazer para tornar-se si-mesmo. A depressão seria uma exaustão da tarefa de ser mestre do seu destino, pois ele é obrigado a tomar decisões sem mesmo saber para onde deve ir. É uma fadiga de ser Eu.
Por fim, lançados então numa sociedade que cria cenários como um espetáculo, como já apontou Guy Debord (1997) em 1967, em que realidade e imaginação se confundem, em que a representação se torna a realidade final, não surpreende que, diante de inibições, vacilos, temores e emoções, passamos a construir uma “irrealidade cotidiana” em que a medicalização para estes “estados doentios” tenha se tornado a regra básica de tratamento. As dores das perdas, o confronto com a morte, com o outro e com seus próprios limites, o distanciamento e isolamento das pessoas propiciado pelos grandes centros urbanos, são formas de sofrimento psíquico na nossa modernidade e com a qual não estamos aprendendo a lidar.
Com um olhar socialmente atento, o psicólogo e psiquiatra J. H. Van de Berg, em 1966, apontava para o que ele considerava como fatores neurotizantes da pessoa, cujo caráter é totalmente social. Entre eles cito:
1. A desunião da sociedade – pertencer a vários grupos e nenhum ao mesmo tempo; perda do sentido de pertencimento a uma comunidade de destino.
2. os meios modernos de comunicação entre os homens: propiciando movimentos a grandes, muitos contatos mas sempre superficiais e pouco intensos, levando a um isolamento social cada vez maior.
3. perecimento dos pequenos grupos: que eram a garantia de intimidade, contatos estreitos e laços de amizade mais fortalecidos. Ex: vizinhança, trabalho
4. retardamento no amadurecimento: ausência de fatores que propiciam o amadurecimento. Ex: a adolescência da classe média pode chegar até os 30 anos.
5. afastamento da morte na existência cotidiana: a morre-se longe de todos em quartos isolados; morre-se em silêncio e solitariamente.
Não há solução eficiente para a vida pois ela é este vai e vem constante de alento e desamparo. “Infelizmente, afirma Birman, as perdas, as decepções e as insatisfações, pontuadas pelos ressentimentos de desesperanças, continuam a acossar a existência humana na experiência cotidiana” (2002, p.58).
Ainda assim, segundo o filósofo Jean-Paul Sartre (1997), mesmo no inferno do “prático-inerte”, do que já está aí, pronto, da minha realidade circundante, mesmo aí, o homem sente ser “possível” que as coisas não perdurem como estão, sente ser “possível” mudar, ser “possível” uma saída, ser possível uma outra vida.
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OS AUTORES
Ariane P. Ewald
Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.
Dayse Marie Oliveira
Mestranda Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.
NOTAS: (as duas primeiras referem-se aos autores e estão acima)
[3] Uso aqui o termo “indivíduo incerto, conforme acepção de Alain Ehrenberg em seu livro “L’Individu Incertain, 1995.
[4] Neste montante está incluído remédios e terapia da fala, como ele chama.
[5] Ratificando assim, nestes termos, a conclusão de Marshall Berman sobre as conseqüências da modernidade para a subjetividade humana, apresentada em Tudo que é sólido desmancha no ar (p. 18).
[6] Eu percebi a banalidade do uso deste medicamente como adjetivo, ao assistir uma entrevista de Marília Gabriela (2003) veiculada na televisão o Canal GNT. Ao entrevistar o jornalista Pedro Bial, ela pergunta sem nenhuma preocupação crítica ou moral: “- Você também é prozaqueiro?”.
[7] Para esclarecimento e diferenciação entre propaganda e publicidade, ver Resolução – RDC Nº 102, de 30 de novembro de 2000, e Carvalho (2002).
[8] A Fabricação da Loucura, Ideologia e Doença mental, O mito da doença mental, Esquizofrenia: o símbolo sagrado da Psiquiatria