Há exatamente um mês, três professores do IF - Instituto de Física da USP - tiveram um artigo publicado na Folha, que reproduzimos abaixo, após o final deste ensaio. O processo de escolha do próximo reitor estava em curso então. Título: "Universidade ameaçada".
A associação entre os fatores não era mera coincidência. Da forma de escolha do reitor à forma de recepção na biblioteca (ver postagem na semana anterior), sou levada a assentir: a USP está ameaçada. E isso é uma pena.
O ponto aqui é este: a USP está ameaçada porque não dá mais conta de formar pesquisadores-cientistas. Esta conclusão se refere, inicialmente, à área de Administração de Empresas, cujas defesas de tese de doutorado venho acompanhado ao longo do ano. Todas as teses foram aprovadas. E justamente isso é ameaçador, porque elas não apresentavam condições de serem aprovadas.
Numa das seções de defesa mais recentes, o candidato a doutor declarou: "É por isso que nos resguardamos apontando outros autores que dizem que o método que escolhemos é válido. Porque as críticas vêm e, quando isso acontece, temos como nos defender. Sempre haverá os que não concordam [com o método que escolhemos]. E, quanto a isso, não há mais nada a fazer".
Acho que não há mais o que fazer para evitar que essa gente tão alienada do mundo da pesquisa científica de fato se torne doutor da USP. Logo da USP. Gente que escreve tão "embolado" como, por exemplo, Renato Janine Ribeiro em seu "A insuportável liberdade do amor", que criticamos em postagem também da semana passada.
Os professores - quase todos veteranos - que participaram dessas bancas de tese apontaram as falhas das pesquisas: conceitos empregados sem critério, sem coerência, sem nada que mostre que o pesquisador ao menos sabe que está escorregando. Nenhuma ressalva, tentativa de justificar o erro. Nada. Cegueira total. As teses são informativas, quando muito. Ou seja, quando se é complacente com o embolamento da redação. O pesquisador, mesmo em tese de doutorado, não se manifesta, como se isso fosse proibido. "Científico" para esses novos doutores quer dizer isto: não colocar o seu na reta.
Como, então, tais "teses" supostamente cumprem o que reza o Regimento da USP, segundo o qual devem apresentar um avanço ao conhecimento, algo original? Ora, se pesquisador, no título, junta a e b, e passa um questionário na empresa c, pronto: isso é considerado original. Repetindo: como ninguém ainda fez pesquisa na empesa c, sobre a e b, dizem que a pesquisa é original. E passa.
Passa porque... a apresentação está "muito boa", o trabalho é "de fôlego" - 'trocentas' páginas. E... porque não dá para reprovar ninguém. Não dá, politicamente falando. E essa é a verdadeira linguagem da USP.
Não há análise do levantamento bibliográfico. Há o levantamento, na nova, tenebrosa concepção do que é "científico" para essa nova geração de doutores da USP: nada de argumentação, nenhuma palavra do próprio pesquisador. E isso foi apontado em todas, todas as defesas de tese a que assisti neste ano.
As bancas examinadoras também reconheceram: "Seu trabalho não apresenta conclusão de fato". Sim, há algo sob o título "conclusão", mas que não corresponde ao que uma pesquisa de doutorado teria de ter. Gente, tudo isso foi aprovado. Afinal, o candidato terá o resto da vida para "aprimorar" aquela pesquisa.
Não é exagero. É isso que acontece. Verifique: basta pegar a agenda da FEA no saguão da faculdade ou pela internet. E escolher entre as várias defesas defendidas numa única semana. Muitos candidatos prestes a receber o título. E examine as teses você mesmo, também na internet. As teses são publicadas na rede.
Muitas teses trazem o método quantitativo da moda: equações estruturais. Logo fica evidenciado que o "pesquisador", candidato a doutor, segue um roteiro monótono e exaustivo: primeiro, um levantamento bibliográfico monstro - quanto mais páginas de bibliografia, no fim do trabalho, melhor. Depois, é ir a campo e rodar um modelo de equações estruturais. Porque é o "método" da vez. Não, não é preciso se delongar para justificar o método, apontar as lacunas no conhecimento que justifiquem a pesquisa, adentrar nas inúmeras possibilidades de se abordar tal problema... Problema? Não, nem o problema está claro.
Um dos membros da banca, na defesa a que assisti outro dia, foi preciso e extremamente elegante ao dizer para a candidata que o trabalho dela estava muito a desejar. Apresentava todos os defeitos que reportei antes. O professor sintetizou: "tudo está nebuloso". A nova doutora deixara tudo no ar. Enfim, ela não sabe conduzir uma pesquisa da forma como deve ser.
O que vão fazer tantos doutores, sem saber pensar, deixando tudo nebuloso? Sim, haverá os que, como Renato Janine, publicarão suas "teses" nos grandes jornais. A grande maioria... pode vir a fazer qualquer coisa, menos formar pesquisadores como deve ser.
Por obra de coisas assim nebulosas foi que me tornei doutora... em USP.
Da faxineira à secretária do diretor - todos comentam abertamente que eu sou... "muito inteligente e estudiosa". Esse boca a boca acabou chegando a mim, para espanto meu. Sim, parece que alguém tão estudioso na faculdade é estranho. Mas o ápice do descalabro está mesmo na História Social: Sara Albieri, a coordenadora do pós-graduação dessa área, não é capaz de "escrever coisa alguma", como ela assim declarou, diretamente para mim, em maio do ano passado. E justamente o doutorado em história social é avaliado com nota máxima pela Capes - 7. Nem a FEA tem um 7.
A Adminstração de Empresas talvez não seja toda a USP, no que concerne ao que apontamos aqui. Mas é instigante a ideia de que algo bem diferente talvez ocorra em outros departamentos, que não o de Administração. E que não o de História... E que não o de...
Assisti também a defesas na área de Contabilidade. Foi a mesma coisa. A de Administração parece se destacar pelo número de doutores por semana. Uma enxurrada, nas devidas proporções.
Amélia que era mulher de verdade...
Quem vai escrever a canção falando dos pesquisadores da USP, que já foram também de verdade um dia?
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Universidade ameaçada
de Élcio Abdalla, Luís Abramo e João Carlos Barata
publicado na Folha de São Paulo, 06/11/2009, p. A3
Que modelo se deseja ter na USP? Uma escolinha de 3º grau ocupada por alunos e professores dedicados à lúmpen-política?
A UNIVERSIDADE de São Paulo está sob ataque. Seu futuro como universidade de pesquisa e instituição acadêmica de ponta está ameaçado.
De um lado, claques de burocratas encastelados nos órgãos de poder universitário empurram uma agenda mediocrizante, que estrangula os esforços daqueles que sustentam a "marca USP". De outro, alguns sindicatos e movimentos estudantis empenham-se em transformar a USP em um "escolão para as massas", no qual o mérito acadêmico seria decapitado.
É nesse contexto que a sociedade concedeu algum interesse aos rituais uspianos de alternância de poder que culminam, dia 10 de novembro, com o segundo turno da eleição para reitor.
Mas, afinal, que modelo a sociedade paulista deseja ter na USP? Uma escolinha de terceiro grau ocupada por alunos e professores dedicados à lúmpen-política? Mais uma sonolenta repartição pública?
Entendemos que uma universidade de ponta, capaz de produzir soluções para os desafios científicos, tecnológicos e sociais do futuro e de multiplicar essas soluções por meio dos alunos egressos de seus cursos, é aquilo que se espera da USP.
Uma tal instituição só se constrói atraindo o que há de melhor na inteligência brasileira e formando os profissionais que liderarão a sociedade do futuro.
Foi assim que os países desenvolvidos chegaram ao sucesso social, econômico, científico e cultural. E só assim se justifica, para o contribuinte paulista, as cifras bilionárias que sustentam a USP.
Então é preciso questionar: estamos caminhando em direção a esse ideal de universidade? A resposta é que, ultimamente, não.
Nas universidades de classe mundial, compreende-se que uma instituição de ensino e pesquisa nunca será melhor do que os melhores pesquisadores que nela trabalham.
Essas instituições fazem o possível para atrair e estimular esses pesquisadores, além de oferecer aos alunos a possibilidade de conviver e aprender com esses indivíduos desde o ingresso na universidade.
Os reitores dessas universidades são escolhidos por meio de rigorosos processos de seleção (que nada têm em comum com as eleições), nos quais a liderança acadêmica e a penetração na sociedade são pré-requisitos indispensáveis.
Já na USP, nos últimos anos, o trabalho dos melhores docentes tem se desenvolvido à revelia e apesar das sucessivas administrações.
A lógica da administração acadêmica foi invertida, com burocratas cada vez mais aboletados nos órgãos centrais em busca de poder, benesses típicas do serviço público e, agora, até mesmo para aventuras políticas.
Por outro lado, na USP, o processo de escolha dos reitores é uma pseudoeleição, em que promessas de bastidores e acordos de poder definem o resultado do pleito.
É preciso inverter esse jogo ruinoso. Os pesquisadores da USP, apoiados pela sociedade que a financia, precisam corrigir os rumos de uma instituição que está à deriva e imprimir-lhe o perfil que dela se exige.
Em primeiro lugar, é preciso acabar com esse processo bizantino de eleição para reitor, que terminou por deformar todas as estruturas administrativas e acadêmicas.
O delírio da tal "democracia universitária", muito popular entre grupelhos na vanguarda do atraso (dentro e fora da universidade), não funciona em lugar nenhum do mundo e deve ser rechaçado como a apropriação indébita de um bem público pelos seus usufrutuários.
Nas melhores universidades, públicas ou não, essa escolha é feita por um comitê de busca composto em sua maioria por membros externos à universidade, tipicamente expoentes das áreas acadêmicas e da sociedade civil, além de representantes dos financiadores daquelas instituições.
Também é preciso instituir mecanismos reais de controle de qualidade e produção dos docentes. Nenhuma universidade de primeira linha resiste a décadas de emprego vitalício garantido a qualquer um que passe num concurso público de ingresso.
A depuração, mesmo de uma parcela ínfima, dos docentes mais acomodados e ausentes, mais do que um aviso àqueles que flertam com o ócio improdutivo, seria um sinal positivo poderoso aos pesquisadores que de fato produzem.
A USP tem que iniciar imediatamente um processo de reforma e modernização, no qual prevaleçam os interesses da pesquisa e do ensino de qualidade. A alternativa é o inexorável sucateamento de um patrimônio público acumulado ao longo de décadas e o empobrecimento científico e cultural de nossa sociedade.
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ÉLCIO ABDALLA , 56, é professor titular do Instituto de Física da USP.
LUÍS RAUL WEBER ABRAMO , 40, é professor associado do Instituto de Física da USP.
JOÃO CARLOS ALVES BARATA , 48, é professor titular do Instituto de Física da USP.