Wednesday, June 29, 2016

Pobreza abençoada


por Mariângela Pedro

Gostaria que todos fossem um dia pobres, antes ou depois de serem ricos.
E que, por fim, fossem comedidos.

Gostaria...

que as mãos não deslizassem tanto nos cabelos (mulheres) ou nas gravatas e relógios de pulso (homens)

e que os divórcios fossem abençoados, já que costumam trazer bem mais felicidade do que muitas coisas, casamentos inclusive.

Que houvesse uma Contra Inquisição, já que houve uma Contra Reforma;

que não se confundisse problemão com solução - é por isso que há as religiões

e que confissão não fosse acompanhada de penitência, bênção ou perdão, mas de compaixão (no lado ofendido) e decisão genuína (no lado ofensor).

Gostaria que meu umbigo falasse, porque meus olhos fazem muitos abaixar a cabeça - o umbigo estaria, assim, mais à altura da vista alheia do que meus olhos que, parece, dizem o que ninguém quer ouvir.

Que o brilho de meus cabelos impedisse tantos pés de pisarem em coisas de fato divinas.

Que as praças tivessem igrejas de fato universais, e não católicas ou pseudo-universais, para que ninguém mais me perguntasse: "O que você faz aqui?"

Que fosse praxe rezar de ouvidos abertos e boca fechada, e que não mais se pedisse a uns que rezem por outros.

Que a ira de cada um alertasse sobre a ambição da hipocrisia onipresente, em vez de decretar a impotência da Sabedoria, parcimoniosamente distribuída segundo a Lógica.

E que, assim, a própria ira conhecesse a Lógica, afinal.


Gostaria que meu batismo fosse menos uma sentença irrevogável, e mais um atestado de como é possível enganar e enganar.

Que muitos parecessem bem mais inteligentes na prática. O empecilho não é o meio, tampouco os genes; é o caráter mesmo: a indolência, as ilusões, o foco nas emoções e ainda o sadismo de obedecer quando convém, e de cercear e oprimir, sempre e sempre.

Que os "cala-bocas" se tornassem a pista certeira para identificar os reais hereges, ou seja, os inimigos da verdade.


Gostaria de encontrar o tal profeta do Caminho de volta a este planeta, novamente no hemisfério norte, mas... mais à esquerda um pouco. Acamparia com ele no alto de uma colina no País de Gales, antes de seguirmos para Londres e deixarmos, na BBC, o triste depoimento de que o Caminho foi em vão - não para ele, mas para seus supostos seguidores, para os quais o Caminho ainda passa longe. E por cima de outros. Muitos destes 'outros', quem se lembra?, são tidos como de religião-mãe, de Salvador consanguíneo, de Palavra "tomada emprestada" para sempre, enquanto tomava forma truncada, incoerente.

Que jamais tivesse conhecido meus amigos, que morreram, todos, por falta de brio, ainda vivos.

Que meus inimigos explicassem aos ex, e aos futuros, amigos meus o que almejo - só os inimigos sabem e saberão.


Gostaria que o direito fosse um direito; que a renúncia à lei, a obrigação dos lúcidos.

Que ser lúcido fosse natural.

Que mais e mais se tornassem capazes de ver as coisas como elas são. Sem isso, que valia há no "sentido histórico"? E que sentido há em "de livre e espontânea vontade"?


Gostaria que não estivéssemos a séculos antes de a humanidade gargalhar de montão de si mesma, em vez de encenar tamanha escandalização ante a união de Jesus e Maria Madalena (reação ao livro Código DaVinci, de Dan Brown, p.ex.)

Que a humanidade fosse capaz de identificar o essencial, dentro e fora do cinema, na igreja, na faculdade.

E curasse a si da compulsão de disparar que fulano é "anti" alguma-coisa - o que, no fundo, no fundo, quer dizer que "como estamos no inferno, ninguém pode se salvar".

Diante de tantos desafios, talvez não seja demais desejar ainda que um simples calafrio imprimisse permanentemente na memória fraca a razão de viver.

E que cada um, justo no viver, ainda fizesse justiça com a própria vida.




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