Tuesday, May 28, 2013

O medo e o trauma de Angelina Jolie falaram mais alto

Mas a atriz publica uma enganosa carta no jornal The New York Times para preservar a imagem de mulher decidida, que age com base em informação.


O texto de Angelina Jolie, publicado no The New York Times no dia 14, é fundamentalmente emocional, com racionalizações confundidas como causa pela saúde. A reação a ele que uma pessoa inteligente prevê é um estouro igualmente emocional. E foi isso o que se deu.

Quase ninguém é capaz de por o racional acima do emocional em situações que remetem à morte (nem o fazem em muitas outras situações). A revista VEJA reforça ainda mais essa inclinação para o emocional, o que fica mais evidente ao finalizar a matéria justamente com as palavras de Angelina com maior impacto sentimental, alusivas a seus filhos e ao dramatizado risco de eles ficarem órfãos.

Aqueles que leram, ao menos em parte, a matéria de capa de VEJA desta semana devem ler, ao menos, também a reportagem da revista ÉPOCA para terem contato com outro texto responsável além deste que ora leem.

Uma escolha "afasta de mim este cálice" vira mote pela vida
O título da carta da atriz é, traduzindo do inglês, "Minha escolha médica". Para começar, trata-se de uma escolha que ninguém quer fazer. Entretanto, uma vez alardeada por uma pessoa com o poder de Angelina, tal escolha parece um produto cobiçado e, mais temerariamente ainda, um com selo de aprovação - jamais formalizada. Passa a ser amplamente considerado como aprovado tão somente por causa do testemunho da atriz. E, naturalmente, Angelina é inteligente e esclarecida o bastante para saber disso, o que a torna suspeita de fazer propaganda enganosa camufladamente.

Além da propaganda disfarçada de ativismo, emerge das palavras de Angelina a estratégia de "fazer de sua vida um manifesto" (termos da reportagem de ÉPOCA). Como argutamente propõe essa revista, a atriz preteriu a alternativa de ter deixado que a notícia acabasse despontando pelo simples fator celebridade, o que, diferentemente do que ocorreu, não favoreceria aclamações tão enfáticas de heroísmo, mas, justamente por isso, evitaria que a discussão decorrente, ainda que com semelhante ímpeto, fosse desgraçadamente desvirtuada pelo peso da marca Angelina Jolie.

Pesadelo vendido como um seguro troféu de coragem
Tanto não há heroísmo em tal "escolha", entranhada de riscos tamanhos e traumas quase certos, que Angelina manteve tudo em sigilo até a conclusão da fase cirúrgica (a mais complicada) do tratamento, que se estendeu, até então, por mais de três meses. A carta dela dá a entender que o tratamento acabou. Mas não é preciso ser especialista, mas apenas racional, para inferir que ela terá de passar por muitos e nada agradáveis exames de acompanhamento.

Se a atriz tivesse tido problemas indisfarçáveis e incontornáveis (como rejeição das próteses), teria vindo a público da maneira como o fez, desfilando, um tanto fora da estação prevista, um afã "correto", bom-mocista, de informar as mulheres em geral?

A estratégia de traduzir a vida num manifesto não me pareceu conduzida com maestria suficiente para afastar o fator ansiedade. A artificialidade do tom da carta de Angelina - carregada de clichés - esconde o que não deveria esconder (o lado negativo do tratamento, abordado, por exemplo, por ÉPOCA). Ao mesmo tempo - e justamente pela camuflagem simplória -, a carta mostra aos sensíveis de fato a questões da alma e do corpo que estar diante da sombra que seja de uma doença grave é extremamente perturbador, até mesmo para uma mulher "perfeita", que me parece incapaz de abrir mão do lugar de deusa do mundo do show e, também, do mundo das mazelas, ambos pungentes, trazendo saldos, apenas aparentemente, contrários.

Anunciadora da salvação ou presa do Mercado?
Presa àqueles dois mundos, mesmo já tendo anunciado sua aposentadoria como atriz, Angelina, há poucos anos apontada a mulher mais gostosa do planeta, perdeu as mamas. Mas brada - e no NYT - algo que soa liberdade ("estou livre do câncer"). Causa polêmica. O Mercado agradece. Agradecerá por um bom tempo - tempo que significa não vida, mas muito, muito dinheiro.

A reportagem de ÉPOCA menciona pesquisa que, entre diversos resultados desfavoráveis, revela que apenas quatro porcento das pacientes evitaram de fato o câncer. As demais mulheres, segundo o médico ali citado, sofreram à toa (não precisavam mesmo da mastectomia). O tratamento é muito doloroso.

Incongruentemente ao conteúdo da matéria principal da edição desta semana, a revista ÉPOCA traz, no mesmo número, na última página, a coluna de Ruth de Aquino, que muito reforça a imagem delirante construída para aquela que sempre se mostrou (a própria Ruth o insinua) uma atriz pouco sensata. Insensatez remodelada gera resultados midiáticos mais distorcidos do que cirurgias mutiladoras "salvadoras"; Ruth grafa: Esta mulher é surpreendente". A jornalista não fala de personalidade propriamente, embora declare que é a personalidade da atriz o objeto de seu artigo. Apenas elenca passagens que todos os que seguem, com mais ou menos afinco, celebridades conhecem. E finaliza: "É inútil enquadrar Angelina em algum padrão". Com tamanha miopia, é mesmo inútil até o esforço de publicar uma coluna.

Nada está perto do consenso nessa área da medicina
Angelina assustou uma legião de mulheres. E outra de médicos. O próprio título, "Minha escolha médica", já tirou o sono deles. Idos estão os tempos em que o médico tinha Voz. A escolha, a decisão era... dele. Ele, o médico, ditava o que tinha de ser feito. E ponto. Hoje, clientes preparam a ida ao consultório visitando "Dr.Google", quando literalmente arriscam uma conclusão, um parecer.

Quando da consulta para valer, quem corre maior risco é o médico. Se ele não proceder como mero coadjuvante, cuja glória possível está atrelada à sua concordância em aderir às "melhores práticas" propaladas com estridência no mercado, logo ele se verá fora do circuito. Aquelas melhores práticas estão na agenda de suas clientes graças, também, a entes como Angelina Jolie.

Isso está implícito na declaração de um médico citado em artigo do próprio The New York TImes, publicado no mesmo dia 14. Tal médico revela temer que muitas mulheres interpretem mal as palavras de Angelina e façam cirurgias desnecessárias. Ora, então há médicos que fazem cirurgias desnecessárias... A vontade dos clientes é hoje mais forte do que o parecer dos médicos, mais imperiosa do que o status, severamente podado, da profissão.

Apesar de não ter como comparar, e de não ter expertise próprio para avaliar, Angelina publicou a estatística que ela comprou: "Tinha 87% de risco de ter câncer de mama". Note que risco é usado em vez de chance, sendo que este segundo termo espelha mais sensatamente a situação. Risco é mais assustador. O medo vende mais, não é preciso ser neurocientista para deduzir.

Angelina também revela que agora os riscos são de apenas 5%. Por que não zero? A revista VEJA traz a explicação de um especialista. A revista ÉPOCA traz outra explicação, de outro médico. Nem nesse detalhe há consenso. É possível que os médicos que ofereceram as explicações não concordem, para começar, com os "apenas 5%". Mas como ir contra a voz de Angelina Jolie?


Manifesto no devido lugar
Angelina, além de atropelar com um tanque da salvação toda a classe médica afetada por sua decisão, emprestou seu poderoso nome a um teste genético exclusivo que, nos termos de sua carta, serve para pautar uma discussão "informada sobre opções". Caro, com recomendações médicas raras, já que as mutações (defeitos) genéticos são exceções, o teste agora passará a ser visto como um investimento necessário, sonho de consumo das mulheres "de personalidade", destemidas. Não; o termo jolieniano não é esse; é "empoderadas".

Se as consequências dessa campanha não fossem de fato trágicas, ela não passaria de pura piada. Ter coragem agora é... ir fundo na trilha do medo até o ponto da mutilação escancarada, "preventiva", de si mesma.

Privilegiado o lado trágico, o testemunho de Angelina pode representar uma lição urgente para todos: como uma mulher traumatizada pela perda da mãe (1) transferiu seu medo em relação à morte para seus filhos, (2) declarando publicamente que eles, os filhos, tinham medo de que ela morresse (se esse medo existia de fato, foi a própria Angelina que o plantou neles). Por fim, (3) mesmo sendo o câncer de mama curável em cerca de 95% dos casos tratados no estágio inicial - o que Angelina teria todas as condições de ter para si -, a atriz não consegue aceitar essa informação. A informação que ela aceita é a do discutível teste, que aponta uma mutação genética, informação que ela vê como justificativa plena para seu pavor. A lição é, em suma, a de como o medo levou à decisão de remover as mamas na ausência de doença.

Para que não restem dúvidas quanto a isso, temos que a probabilidade de a mutação genética significar efetivo desenvolvimento do câncer é menor do que a probabilidade de cura do câncer inicial. Ou seja, não há tanta "certeza" de que o câncer surja, mesmo com a tal mutação; a cura de um câncer incipiente, mantendo-se as mamas, é que é quase certa. Como sustentar que a mastectomia preventiva em Angelina foi mesmo uma decisão informada?

Mais ainda: enquanto a estatística relativa à cura do câncer é respaldada na observação de inúmeros casos, a estatística que Angelina Jolie alardeou, sobre a relação entre sua suposta mutação genética e o surgimento do câncer de mama, não conta, nem de longe, com tal amplitude de observações. Se o câncer de mama é o mais comum, o câncer de mama supostamente associado a tal mutação genética é raríssimo.

Embora vários veículos tenham publicado que a mãe de Angelina morreu de câncer de mama, o jornal em que a atriz publicou sua carta declara, em artigo já mencionado, que Angelina não revela o tipo de câncer que sua mãe teve.

Daquela fonte temos também a revelação, essa sim surpreendente, de que Angelina recusou entrevista para aquele artigo que, repetimos, foi publicado também no The New York Times, o mesmo que divulgou sua carta.

Angelina também omitiu outra informação fundamental para uma "decisão informada"; ela não disse que apenas UMA empresa vende aquele teste genético: Myriad Genetics. Boa sorte, leitora.

Após essas considerações, perguntamos: Onde está a "tal vida como manifesto" agora?

Esperamos que esteja mais perto do seu devido lugar.

Mariangela Pedro
28 de maio de 2013
Este é um texto expandido, a partir daquele aqui publicado em 24.05.2013










SEARCH BOX ~ BUSCA

THIS PAGE IS DESIGNED FOR A TINY GROUP OF
'-ERS' FELLOWS: LOVERS OF IDEAS; EXPLORERS OF THE SUBLE; THINKERS AND WRITERS OF INEXHAUSTIBLE PASSION. ULTIMATELY MINDERS OF FREEDOM.