Tuesday, February 19, 2013

BENTO, O IMPACIENTE DE DEUS, DESPEDIU-SE PARA DESPIR-SE

revisto e com referências em 21.02.2013

O papa renunciou.
O momento para isso parece o pior. Comecemos com o calendário: Quaresma, vésperas da Páscoa; Jornada Mundial da Juventude em poucos meses. Não dava para esperar um pouco?

"Bento XVI renunciou porque cansou". "Bento XVI renunciou por causa da disputa interna de poder". De outro ângulo, "ele renunciou para unir a Igreja".

Bento ele mesmo falou em religião hipócrita. Essas palavras não foram assimiladas por nossa imprensa; nem a renúncia em si o foi. Parecem que partem para uma cobertura jornalística com uma baita rede, em vez de anzol, voltando aos berros, hálito de peixe morto, para anunciar uma presa que mal dará conta de encher os olhos, que dirá a barriga de tantos.

Reinaldo Azevedo, que deixa escapar que é católico em seu artigo na Veja, não segura o apego, ou a adoração, por sua fé. Seu tom nos captura como uma enxurrada mas, para quem analisa discursos como poucos, restaram galhos fortes e, sem danos à razão, bons frutos para a crítica. No outro extremo, Barbara Gancia, da Folha, acha que não é hipócrita porque é verborragicamente incauta. Dois grandes confusos que, eu sei, são elogiados. O lúcido não tem como elogiá-los. E são poucos.

Os dois colunistas consolidados no mercado são, ainda, dada sua oposição, representantes dos famigerados 'dois lados', a pedra (porosa) do frouxo relativismo. Vou antecipar: onde há relativismo, há hipocrisia. Nenhum dos lados escapa.

O dogma não elimina, nem afasta a hipocrisia. Dom Odilo Scherer, também em Veja, soa sofisticado no palavrório. Mas sua teologia é preguiçosa e nefasta, especialmente porque sugere que o Dogma não cedeu nem um pouco como imprescindível para a salvação. Chamar o Dogma de 'graça' não muda a ordem estabelecida no batismo. No âmbito individual, a graça pode como que... se evaporar, dada a quentura do clima pós-moderno, metáfora desde já automaticamente inscrita como mais uma terminologia aceitável, substituta de "os fornos do inferno". 

Ora, que se vá a micrograça que, aliás, o homem pós-moderno despreza!; pois a macrograça, o dogma, fica. Ouvimos esse refrão do coral ao fundo, enquanto os conservadores - alguns não reconhecidos como tal - sentem, no bolso, falta da renda que o funeral traria.

Reinaldo Azevedo disse isso com outras palavras. Já Gancia faz sua carroça desenfreada atropelar os burros. Isso é interpretado por alguém como evidência de que ela não é covarde. Os burros, não há dúvida, escapam ilesos. A carroça...

Estudiosa dos diversos temas relacionados à Santa Sé, pensei muito sobre a renúncia de Bento. Aqui desenvolvemos nossa tese, apontando o que nos surgiu, a partir do estudo e da observação do próprio pontífice, como o fator mais decisivo para Bento ter chegado a efetivar o quase impensável plano B para um papa romano.

Retomando Gancia, ela desaforadamente declara que Bento "já vai tarde". Apresentou ela argumentos sólidos para sustentar que o momento da renúncia é tardio? Não. Temos ali, sem dúvida, o "já vai tarde" típico de "barracos". Como Gancia "devolve na cara" que quem é hipócrita é ele, Bento, isso deve bastar a ela para o "vai tarde" - um hipócrita nem deveria ter entrado, não é, Gancia?

A colunista parece-me ao máximo transtornada ao associar loucos de batina com homossexualidade "que a afasta de Cristo".  Será que ela seria capaz de arrazoar, serenamente, sobre o porquê de a hipótese de ser afastada de Cristo causar-lhe tanta contrariedade? A "paz de Cristo" - associada até ao ato de comungar - é a paz de mais curta duração das que eu já observei. É afoita feito faxina de diarista. Não há vestígios dela no texto de Gancia.

Já no artigo de Azevedo, apontado em um comentário online como "lindo", temos panos quentes de boa qualidade; tão boa qualidade que passaria como teologia. Mas não passa de erro banal, entregue em tom amplamente percebido como 'poético'. Ilustramos nosso ponto com este trecho do artigo:
Os “golpes contra a unidade da Igreja” e as “divisões no corpo eclesial” não remetem às picuinhas de bastidores do Vaticano. É um erro ler a vida intelectual da Igreja como quem analisa as divisões internas do Kremlin, do Palácio do Planalto ou da CBF... (referência completa ao final)

Talvez Raul Seixas, no alto dos seus 10 mil anos, conseguisse convencer indiscriminadamente, para além do portentoso rebanho, de que aquele a quem Deus iluminou, o outro não alcança, nem mesmo os calcanhares dele.

Receio, porém, que sequer de fato saibamos o que é "um ser iluminado por Deus". Nesse contexto de parca sabedoria, a renúncia do papa dividiu não só a Igreja de Roma, mas o mundo. Parte tacha-o de frouxo e hipócrita; a outra, de humilde e corajoso. (Gancia, no primeiro grupo. Odilo Scherer e Azevedo, no outro). Nesses termos um tanto banais, a divisão não é enigmática, embora ainda insuperável, o que mostra-se verdadeiro sempre que, iluminados exemplarmente ausentes, observamos o amplo fenômeno do 'ser centrado em si mesmo' e seus 'vieses', já que cada avaliação, cujo foco desta vez é a renúncia do papa, meramente reflete os interesses e 'estrutura' do avaliador, quer fale apenas por si, quer seja porta-voz, ainda que não declarado, de terceiros. Frisamos: a divisão é insuperável, pois vieses são insuperáveis.

Pode haver fé além do Vaticano?

"Esse papa não tem fé!" "Fiquei frustrado.", disse-me, há pouco, um crente 'em transição' ele mesmo - é um católico que, sem enfrentar sua própria renúncia, "mudou-se" para uma igreja evangélica. 'Sentir-se bem' é todo o arrazoado que esse homem oferece para as suas ações. Isso parece estar explicado pelas palavras de Odilo para a Veja. Entretanto, inevitavelmente contrariando o arcebispo, essa 'razão humana' tão tacanha não é um poste com uma lâmpada irremediavelmente fraca, a menos que, defende ainda Odilo, a Santa Sé, com exclusividade, providencie uma nova lâmpada e a instale para a eternidade.

Tal razão defeituosa é resultado de uma educação laica raquítica. A educação religiosa católica geralmente preenche o buraco, ou, como lhes é mais favorável, "elimina o vazio da existência". A razão continua débil. Tenho base para supor que o alto clero, em sua maior parte, bem sabe que esse meu argumento é verdadeiro. O médio clero, por sua vez, é como os colunistas citados e os demais humanos, sejam do rebanho ou não, que têm em comum o não ter avançado para pensar profundamente.

Azevedo parece que pensa profundamente, mas ele engorda sua 'tese' - um primor de 'enganação' - com base numa citação de Bento, enquanto deixa de fora outras, também do papa, que ele, Azevedo, não pode alegar que desconhecia. Azevedo não traz para sua 'tese' a alusão de Bento à hipocrisia, porque ela derruba prontamente sua argumentação.

Voltando à avaliação daquele homem que me disse que Bento não tem fé, aponto como importante observar que esse julgamento se confunde com a causa para a renúncia, o que deixa mais evidente que o pensar profundamente está ausente. Para os que vigiam a fé na Igreja, essa característica que acabei de apontar serviria como exemplo de "subjetividade". Só que a Igreja jamais afirma que o remédio é o pensar profundamente. O remédio é aderir à resposta da Igreja, sendo que todo o que desconhece , ou "esquece", essa resposta, é acometido de subjetividade. Isso só não é uma falácia se for uma manipulação bem calculada.

Todas essas proposições estariam deslocadas aqui não fossem elas a base para detectar a... hipocrisia. Há hipocrisia na renúncia de Bento?

Faça do seu sim, um sim; do seu não, um não, pregou Jesus. Calma! Embora sozinha, quase posso ouvir vozes exaltadas acusando: "Bento não respeitou esse ensinamento" (ensinamento que, a propósito, quase ninguém lembra espontaneamente).

Voltar atrás, renunciar... não é disso que trata tal ensinamento-chave para prevenir a hipocrisia. Mas - eis mais um característica do "ser centrado em si" - tudo é distorcido, "interpretado" sem esforço de reflexão, com um simples salto, no afã de confirmar a avaliação enviesada.

Bento... quantas razões para renunciar! O Banco do Vaticano está sob investigação pesada desde 2009; o papa é, formalmente, o responsável maior. O presidente do IOR se reporta apenas ao papa. Fechando-se o cerco, cair fora surge como óbvio.

Além disso, a escolha do novo presidente do IOR (posto que estava vago desde maio do ano passado) antes do conclave não faz sentido, exceto como manobra para desmentir as teorias envolvendo o Banco do Vaticano, especialmente a fácil constatação de que Bento não conseguiu nomear um novo presidente para o IOR em meses, por seu secretário de Estado discordar da escolha. A renúncia parece fortemente atrelada à condição de ser finalmente nomeado um presidente, antes que o secretário de Estado seja substituído por outro, apontado pelo novo papa.

Além disso, Bento estaria implicado (não tenho isso confirmado) perante a justiça em pelo menos um caso de pedofilia. Pode ter sido forçado a renunciar, para, sobretudo, fazer valer, sem causar mais alarido, o Dictatum Papae (1075): o papa não será julgado por nenhum tribunal da terra. Ao continuar morando no Vaticano após o pontificado, Bento permanece imune em relação a processos judiciais. É com base nessa imunidade que o Vaticano já acolheu criminosos de guerra que, assim, viram-se livres do tribunal.

A "divisão na Igreja" é chavão milenar. Meu padre de anos foi punido, sem transparência alguma, em nome da "não divisão da Igreja". Isso aconteceu há menos de dez anos, bem recente em termos da longeva Igreja de Roma. A disputa de poder, por sua vez, sempre existiu; o que é novo é ver isso na primeira página. Melhor, em tantas primeiras páginas, até mesmo ao alcance dos cidadãos alheios ao modus operandi da Santa Sé, enquanto constituem a maior porção de católicos de uma mesma nacionalidade.

A Carta Capital apresenta, de longe, as melhores reportagens e ensaios sobre o assunto. A revista lembra que a renúncia de Bento se dá exatamente na data programada para ele morrer, conforme plano que vazou há um ano. Assim, o mais certo é atribuir a renúncia a isso. Contudo, nenhum outro veículo, segundo pude apurar, associou aquele plano à renúncia.

Ao constatar isso, pensei: Bento, há um ano surpreendido com um plano para matá-lo, decidiu, por sua vez, surpreender: "Saio vivo!"

Mesmo com tantas razões balizadas para a renúncia, continuei a me perguntar sobre ela. A verdade jamais está facilmente ao alcance. Jamais está ela em vieses.

Então, finalmente cheguei ao homem. Fui além dos acontecimentos no Vaticano para analisar o jeito de Ratzinger, sua expressão facial. O resultado foi conhecimento novo: primeiramente, concluí que ele tinha sido o papa mais na dele que já vi. Com isso quero dizer, o homem mais autêntico, o que o distingue fortemente de João Paulo II.

Sem descartar que Bento percebeu que estava prestes a ser um segundo João Paulo I (Albino Luciani), que foi envenenado ao anunciar, em setembro de 1978, que 'limparia' o banco que, teoricamente, estava sob seu mando, explorei a hipótese de que havia algo mais para a renúncia do que tudo o que já foi dito acima.

Uma decisão jamais é explicada por um único fator. Uns pesam mais; um apenas desponta como o 'decisivo'. Nenhum dos fatores que explorei até agora me pareceu o decisivo.

Um ser autêntico, como Ratzinger, tende a ser forte. Sobretudo, tal indivíduo é fiel a si mesmo. Para os muitos que insistem que Bento não é autêntico, mas hipócrita, rebato: perdoem-me, mas vocês não sabem o que dizem. Insistem na questão da pedofilia. Não sabem que "apenas transferir" padres pedófilos não se restringe a um acobertamento. Aos olhos não canônicos, pode ser considerado acobertamento. Mas, ao ler, há anos, o Code of Canon Law (Código de Direito Canônico), que encontrei em inglês (e não em latim) no site o Vaticano, ficou claro: a maior punição prevista para o clero é... transferência, segundo aquele código. Como, obtusos, avaliamos sem conhecimento!

Contrario a colunista precipitada: Bento não vai tarde. E ele é o oposto de arregão. Tampouco o vejo como corajoso ao feitio Gancia, por ter se imposto à Cúria.

Se bem leio, além de discursos, pessoas, como alguns reconhecem, eu cheguei, afinal, ao fator decisivo para Bento: sua integridade, no sentido de ser uno; de aderir, incondicionalmente, ao exercício de fazer de seu sim, um sim. Isso não significa, repito, jamais mudar de ideia.

Concisamente, o papa renunciou. Mas foi o Homem quem decidiu. O homem Ratzinger, após quase ter-se perdido, no meio do caminho, em tantos fatores associados a sua situação, extremamente conmplexa, conclui: o único que não pode partir desta vida dividido sou eu! Não posso chegar ao outro lado como o dono do banco mais corrupto, e nada transparente, do mundo. (isso sim, seria hipocrisia.)

Não foi a teologia que o salvou; nem a humildade, que o catolicismo interpreta como o fazer-se tosco de tanta passividade, ser um galho quebrado, que sequer dá para o gasto. Fui tomada, repentinamente, de admiração por Bento, porque, finalmente atinei, ele decidiu-se por sua fé. Não a fé institucional, não a regulada pela Congregação que assumiu a Inquisição, chefiada por ele antes de ser papa. Bento deixou - sim, deixou mesmo - a igreja da hipocrisia. Vai curtir - nunca é tarde - a sua igreja particular, termos que devem ser entendidos com a ciência de que os extraio de um livro do qual reproduzo trecho, adiante.

Bento, no auge de uma avalanche de ameaças, deparou-se com a fé não hipócrita. Quem opta por ela (raros) tem que estar inquestionavelmente livre da hipocrisia já que, do contrário, não consegue concretizar a decisão, enfrentar a confusão, a avaliação hipócrita da maioria, a agressividade dos "entendidos" que não veem.

Contudo - e este é que é o mistério da fé verdadeira (não hipócrita) - uma vez concretizado o ato, aqui, a renúncia pública do posto mais influente do mundo, tudo fica incrivelmente fácil. Bento está, a cada dia, mais sereno, confiante.

Quase certo, terá saudades das missas, das bênçãos às multidões. Ele não está contente. Não está aliviado. Seu semblante, tampouco, é o de quem foge das outras autoridades deste mundo, que, de todo modo, não podem pôr as mãos nele. Bento caminha de modo diferente, mais consciente, para aquele que ele elegeu a Autoridade de sua vida.

Defendida a verdadeira razão para a renúncia, resta também demonstrado que crer em Deus não elimina a hipocrisia. Em geral, até a recrudesce. Calma! Sim, é evidente que descrer, por si só, não afasta a hipocrisia. Seja de um lado, seja do outro, a nova fé de Bento é raríssima.

Ele concorda: vou seguir a burocracia até o fim. Falarei em latim, usarei o chavão. Deixou, porém, escapar, ou intencionalmente entregou: "Vou-me esconder do mundo". Isso é o que temos de autêntico. Bento não teria dito isso, estivesse ele fugindo de autoridades, estivesse ele envergonhado, constrangido por seu ato.

O próximo papa, algo me diz, causará pelo menos tanta surpresa quanto a renúncia de Bento. (Na verdade, estou convencida de quem será o novo papa, mas não o aponto aqui; não é o texto para isso.) O sucessor de Bento, seja quem for, deixará, à sua revelia, absolutamente clara, ostensiva, a diferença entre fé institucional e fé não hipócrita. A primeira, conta com cerca de um bilhão de representantes, leigos e não leigos, pelo mundo; a segunda, pairará não como a sombra, mas como a luz de Bento - clarão que restará inamovível, ainda que imperiosamente herege, incólume aos apocalípticos esforços de um marketing imprudentemente pio, para estabelecer uma interpretação 'canônica' para a renúncia 'histórica', visando a prontamente sepultá-la.

A gritaria surda, nos meus ouvidos, persiste: "Se ele é autêntico, por que disse que saía por causa da pouca saúde, o que não é, então, a verdade?"

Palavras lúcidas e fé autêntica são repudiadas, não há dúvida. Bento, dono de pensar profundo, arredio a essa reação furiosa, talvez pudesse ter revelado sua verdadeira razão para renunciar sem provocar um ciclone de ira, recorrendo a palavras como estas:

...passei a dizer, e a dizer como nunca havia sequer suspeitado antes, que nenhum espaço existe se não for fecundado... e na claridade ingênua e cheia de febre, logo me apercebi... do voo célere de um pássaro branco, ocupando em cada instante um espaço novo... e o pássaro que voava traçava em meu pensamento uma linha branca e arrojada, da inércia para o movimento eterno... eu disse cegado por tanta luz: fundarei minha igreja particular; a igreja para meu próprio uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti num momento profeta de minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra, me acontece de repente querer, e eu posso! vendo o sol se enchendo com seu sangue antigo... lançando na atmosfera seus dardos de cobre sempre seguidos de um vento quente zunindo nos meus ouvidos,... despenteando o silêncio de meu ninho... quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!
(Lavoura Arcaica, referência completa no final.)

Quem aí entendeu?

O pássaro me remete à minha memória de Fernão Capelo, gaivota expulsa do bando; fundou sua igreja particular com a busca da perfeição no voar. Ao cabo de uma jornada que não tem fim (oxímoro intencional), percebeu que amava a 'bandidade' de gaivotas, acima de todas as coisas - o desamor delas incluído.

O personagem do livro cujo trecho transcrevi, a quem as palavras acima são atribuídas, tem dezessete anos e saúde perfeita, e dela faz pedra em sua 'igreja particular'. Bento não tem nem a idade nem a saúde, mas tais elementos não perfazem tudo o que pode ser tomado como pedra. Ninguém jamais deixará de estabelecer tal igreja particular por falta de 'pedra'. Essa igreja particular - leia-se fé autêntica - pode insinuar-se à beira da morte, no âmago da dor, na pontinha de uma saudade sem fim, na... Produzir feitos, a partir dela, depende de se perseguir, incansável, incondicionalmente, o direito de ser.

A Impaciência, naquelas linhas, é sinônimo de revolta, na concepção de Camus.

Justamente pela revolta que ela encerra, a renúncia de Bento vem ensejando panos quentes e distorções, em coberturas que sequer se aproximam do jornalístico ou analítico. A Folha, em letras garrafais, afirmou que um funcionário será o elo entre Bento e o novo papa. Apenas se soube que haverá, sim, um funcionário que trabalhará para os dois. Os termos do jornal estabelecem, sem base, uma interferência de Bento no próximo pontificado.Teria o jornal simplesmente errado? Ou, calculadamente, ensopa-se as manchetes de antídotos à revolta? Bento, em várias reportagens com falhas semelhantes, teria saído 'mas não tanto'.

Ninguém publicou, até onde apurei, que Bento é um divisor de águas. Projetam a mudança para frente, falam em desafios para o novo papa. Mais coisa repetida e errônea: o novo papa entra com gosto de gesso na boca. O revoltado vai para o mosteiro.

Errou também o vaticanista ilustre que declarou, taxativamente, que Bento estabelecia um forte precedente para novos papas renunciarem. Quem não vê apenas uma cláusula, mas considera também o ato de um Homem, a renúncia de Bento estabeleceu um precedente com sentido justamente oposto: fica mais do que implícito, entre os vãos da Basílica: agora é que ninguém mais renuncia, de jeito nenhum. Não me parece improvável que mudem até a legislação canônica, eliminando a opção de renúncia.

O óbvio: Bento entrará para a história como o papa que, deixando muitos desapontados, renunciou, embora não seja o primeiro a fazê-lo. A 'liberdade' geral para avaliar o ato é que foi inaugurada.
O ponderado: Bento não me desapontou com a renúncia; não entra para meus apontamentos como mais um papa que sucumbiu à cúria. Como pesquisadora, acompanhava um papa chato, que ainda não descobrira sua própria fé. Mas chego agora a um belo e estrepitoso ponto. E vírgula.

Lá vou eu, de novo, reescrever a História (e gerar ira): O papa Bento XVI não sucumbiu à cúria. O homem Bento venceu a cúria, como Jesus venceu o mundo. Isso tornou-lhe, plenamente possível, o impossível: a renúncia - e no pior momento.

Só a fé não hipócrita dá apoio a tanta 'audácia'. (ela desponta em cada hora...)

Vivi uma situação assim terrivelmente complexa - não é preciso ser papa. Basta estar vivo - e não ser arregão. Amando, como nunca amara, um católico da hierarquia mais baixa da Santa Sé, a montanha a transpor, para mim, não foi o voto de castidade dele; essa foi a montanha para a paróquia inteira. Eu lidei com isso aderindo à castidade também. Diante da tamanha pressão daquela comunidade, mesmo com a castidade de ambos, não engendrei uma saída de armário, ladeada de palavras no estilo avalanché (o acento é intencional; estilo é estilo), à semelhança da de Barbara Gancia. Fui pensando, o pensar profundo, calçando os sapatos de todos, para aprender as consequências do não pensar. Cheguei a amar acima de todas as coisas. Ele? Foi punido.

A razão? "Para eliminar a divisão na igreja". É sério. É absolutamente verídico.

Para encurtar uma história de anos, eu deixei, logo no ano um, de aderir ao catolicismo. Meu amado, católico fanático, não aceitou. Aos olhos dele, eu virei a enviada do diabo. Sem metáforas, sem exagero. Mas o amor por vezes imperava. Então, ele declarava que eu tinha Deus na minha vida. No outro dia, era de novo a herege, porque ele sucumbia às pressões do pároco e às intrigas dos fiéis mais ricos da paróquia. Não paramos, os dois, no hospício, por muito pouco. "Volte a aderir ao catolicismo", aconselhou um paroquiano que, raro, torcia por minha amizade com o padre. "Não dá", eu respondi.

Claro, o meu texto está. Bento não deixa, pelo menos oficialmente jamais deixará, de ser católico. Talvez o deixe secretamente. Seja como for, o ponto crucial é a decisão pela fé não hipócrita. Essa decisão, na igreja particular que fundei vendo meu amado dar, cada vez mais, suas costas a mim, é a que importa, a única decisão que importa... para Deus. Meu amado tinha - e ainda deve ter - um jeito bem parecido com o daquele homem, do início deste texto, que acusou Bento de não ter fé. 

Durante aqueles anos em que enfrentamos, de modos totalmente distintos, a mesma paróquia (uma paróquia bem parecida com todas as do mundo católico), a fé convencional, institucional, tomou totalmente a razão de meu amado. Ele agarrou-se à obediência incondicional; despejou contradições nos sermões e inflamou-se com uma agressividade que acomete quem rejeita a própria essência.

Após o curto efeito da hóstia, a paróquia se alimentava com fofocas sobre supostos atos de sedução de minha parte. Pressionado ao ponto de dar boas-vindas à demência, meu amado chegou a declarar numa missa: "Amor não existe". Era essa a 'divisão' alegada para a punição dele? Não. A única coisa que importa para a Igreja é a integridade do dogma. Ao longo daqueles anos, bem diferente de Bento, eu tinha desenvolvido uma teologia consistente que não fundia fé católica e razão. Este texto é uma prova disso. Naqueles anos, também escrevia muito, explicitando que a relação consistente é entre fé genuína (não hipócrita) e o pensar profundamente. E era elogiada pelos raros que conseguiam entender meus escritos. Então, chegou a hora para o pároco. Ele despachou meu amado. Mas, como foi cercado das manobras de praxe, o afastamento compulsório pareceu uma renúncia. Uma renúncia bem diferente da de Bento; uma renúncia sem o pássaro branco, a luz, a revolta.

O afastamento-surpresa de meu amado, que, claro, contava tantas e tantas cabeças ungidas em rebanho que o seguiu por anos, deixou, também, interrogações. Que a inércia milenar da salvação travestida - veia arterial judaica, via crucis romana - logo exorcizou. Um final triste para um dos meus mais profundos diários.

As páginas mais novas deste extenso diário de, digamos, pesquisa comentada, em contraste, registram um final incrivelmente inspirador. Temos um papa-figurino, da Igreja de Roma!, revelado, no fim, um Bento (abençoado) que simplesmente fez, por linhas percebidas como tortas, jus a seu nome.

Ficaria entusiasmada como nunca se o lampejo de clareza da renúncia de Bento gerasse uma crise de fato, e não corriqueira, na Igreja de Roma. Por outro lado, convictamente duvido que deem atenção à luz. Ela, a luz, vai incomodar, mas não será assimilada. A fé rara, novíssima de Bento não salvará a Igreja.

Ainda assim, a luz da renúncia de Bento XVI passou por nosso telescópio, iluminando nossa interpretação de seu ato pontifical derradeiro, de tal modo que, não fosse assim, este texto não passaria de uma chata e errônea tentativa de análise, como todas as já publicadas. Graças à luz de Bento, passa a haver muito mais entre o céu e a terra do que apenas a Igreja Católica. Bento está nu. E nós, um inusitado rebanho secreto, esperançosos como nunca.

Mariangela Pedro

REFERÊNCIAS
1.Trecho longo em itálico extraído de:
NASSAR, Raduan, Lavoura Arcaica, Cia das Letras, 3a. ed.

2. CARTA CAPITAL
A edição de Carta Capital que elogiamos, é a da semana.
Para comparação com os artigos dos colunistas de Veja e Folha mencionados em nosso ensaio, recomendamos em especial o texto de Mino Carta, "Cristo Traído"
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/cristo-traido/
e o artigo que começa na página 56 da revista (não está online).

3. O artigo de Barbara Gancia, "Bento, o Arregão", é encontrado aqui:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/barbaragancia/1231017-bento-o-arregao.shtml
Nota da Mari: Em 21.02, dois mil e oitocentos indivíduos constavam como tendo recomendado o texto de Gancia, que eu descrevo, acima, como "estilo avalanché".

4. Trechos do artigo de Reinaldo Azevedo, "Bento XVI contra a cultura da morte", são encontrados aqui:
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/bento-xvi-contra-a-cultura-da-morte/

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