Seria em vão. A Câmara deu seu sinal verde em 24.09.2009
Lula da Silva assinara a Concordata, no Vaticano, junto com Dilma Rousseff, em 13 de novembro do ano anterior.
03/09/2009 O ESTADO DE S.PAULO p. A3
A fé como negócio
Se a ratificação do acordo firmado pelo presidente Lula e pelo papa Bento XVI já era
ruim, uma vez que ignora o princípio do Estado laico consagrado pelas Constituições
brasileiras desde a proclamação da República e concede privilégios que colidem com o
princípio constitucional da igualdade, com a aprovação do projeto de "Lei Geral das
Religiões", pela Câmara dos Deputados, a situação poderá assumir aspectos de alçada
da legislação do Código Penal.
O acordo entre o Brasil e o Estado do Vaticano foi assinado em Roma, no fim de 2008. Ao
justificá-lo, a Igreja Católica, valendo-se da condição de ser formalmente subordinada a
um Estado soberano, alegou que o objetivo do documento era sistematizar o que estava
previsto por leis esparsas. Além da isenção fiscal para pessoas jurídicas religiosas, o
acordo prevê a manutenção do patrimônio cultural da Igreja Católica com recursos
públicos e isenta a instituição de cumprir obrigações impostas pelas leis trabalhistas
brasileiras. Tendo sido redigido de modo vago, ele abre caminho para a ampliação
dessas concessões para todos os negócios da Igreja, que é dona de editoras, rádios, TVs
e escolas.
Tendo o presidente Lula cometido o equívoco de assinar esse acordo, era inevitável que as demais igrejas invocassem isonomia, exigindo os mesmos privilégios. Quando a
ratificação do acordo foi encaminhada ao Legislativo, como determina a Constituição, as
bancadas evangélicas aproveitaram a oportunidade para estender a toda e qualquer
"instituição religiosa" as mesmas vantagens legais, trabalhistas e fiscais concedidas à
Igreja Católica. O projeto de lei apresentado com esse objetivo tramitou em tempo
recorde. Seus vícios começam com a total liberdade dada às "denominações religiosas"
para criar, modificar ou extinguir suas instituições, e avançam com as isenções fiscais
para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas vinculadas a quaisquer instituições que
passem por religiosas.
Essas concessões abrem uma imensa porteira para negócios escusos. Basta ver, nesse
sentido, a ação que foi aberta há três semanas na 9ª Vara Criminal da capital contra a
Igreja Universal do Reino de Deus, sob a acusação de formação de quadrilha e lavagem
de dinheiro. Segundo o Ministério Público, o "bispo" Edir Macedo e seus "pastores" viriam
há dez anos iludindo fiéis e cometendo os mais variados tipos de fraude. Os promotores
afirmam que, somando transferências e depósitos bancários feitos por pessoas ligadas à
Universal, ela teria movimentado R$ 8 bilhões, entre 2001 e 2008, desviando para a
aquisição de emissoras de TV e rádio, financeiras, agências de turismo, imobiliárias e
jatinhos recursos doados por fiéis para atividades de catequese.
Dias antes de acionar a Universal, o MP havia informado que retomará o processo por
crime de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro contra os fundadores da Igreja
Apostólica Renascer em Cristo. A ação estava suspensa porque o "bispo" Estevam
Hernandes e a "bispa" Sônia Hernandes estavam cumprindo pena de 10 meses de
detenção nos Estados Unidos, por terem entrado naquele país sem declarar a exata
quantia de dinheiro que levavam.
Além dos vícios já apontados, o projeto de "Lei Geral das Religiões" contém outros
absurdos. Um deles é o dispositivo que prevê que propriedades de uso religioso não
poderão ser demolidas ou penhoradas, por causa de sua função social. Como os
"supermercados da fé" cada vez mais vêm sendo instalados em galpões, garagens,
cinemas e lojas, chamados de "templos", isso significa que esses imóveis não poderão
ser desapropriados para obras de interesse público, o que representa uma interferência
nas leis municipais e nos instrumentos de planejamento urbano estabelecidos pelos
planos diretores das prefeituras. Razões de sobra tinha o deputado Chico Alencar
(PSOL-RJ) - que votou contra a ratificação do acordo com o Vaticano e o projeto da "Lei
Geral de Religiões" - para, ao advertir sobre esse risco, afirmar que "templo é dinheiro".
Vamos esperar que o Senado, que terá de dar seu voto sobre os dois projetos, aproveite
essa oportunidade de merecer um aplauso da opinião pública.
Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 02 de Setembro de 2009
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090902/not_imp428293,0.php