Monday, January 28, 2013

A grande volta em torno do Holocausto - de hereges número 1 a homenageados


Num grande evento, muito se aprende. Em eventos mal organizados, literalmente se morre.

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Cerca de duas centenas (ver observação ao final do texto) de jovens mortos numa câmera de gás de outra sorte foi um início inusitado, no Brasil, para o dia em mémoria das vítimas do Holocausto. Seis milhões de judeus exterminados de diversas formas bárbaras não perfaz a soma total. Há os sobreviventes. Os herdeiros, dos herdeiros, dos herdeiros.... dos sobreviventes. Há o povo alemão - quem discordaria de que também são vítimas? O povo que se deixa dominar - qualquer povo - é uma grande vítima, cega e, em geral, não reconhecida.

Espremida entre um senhor corpulento e outro, só um pouco menos encorpado, pensei e senti profundamente durante a sessão de homenagem às vítimas do Holocausto, na sinagoga da rua Antonio Carlos, São Paulo.

Melhor espremida do que com aquela matraca ao meu lado o tempo inteiro, consolei-me. A plateia estava vazia quando cheguei. Escolhi uma cadeira na extremidade da quarta fila (as três da frente eram para autoridades). Junto ao corredor central, debaixo da abóbada com elementos coloridos, que nada lembram as figuras católicas, dei-me como muito bem instalada. Mas logo chega a senhora irrequieta, espalhafatosa, incapaz de calar-se por meros instantes que fossem. Pulei dois lugares em direção ao miolo.

O clima de paz logo se alterou. Ah, temos humanos! Por certo, há uns humanos que se destacam. Se isso não se deve a Deus, então é graças à vida; e graças à obstinação por viver deles. O resto é resto. É mesquinharia, apego ao próprio eu. E chatice.

                                               Poder ainda se escreve com p de patota,    sublinhado com p reforçado de povo pateta.



"Oi-i!" Uma mulher com jeito pedante interrompe minha apreciação do folheto sobre a exposição "Sublime", em curso logo ali, no espaço contíguo à sinagoga. Obras de sobreviventes do Holocausto. "Dá para você pular uma cadeira para meu marido sentar aqui e eu ficar junto dela?" Eu pulei. A mulher era amiga da faladora. Agora, eu estava no meio da fileira. O marido, que chegou somente pouco antes do início, era aquele homem menos corpulento. Atazanou-me a cerimônia inteira por explodir palmas de ensurdecer, todas as vezes que a plateia emitia um sonzinho com as mãos. Ele queria ensurdecer a mim ou a esposa?

O homem com estatura de Frankenstein chegara pouco antes. Várias vezes, levantou-se e esgueirou-se em direção a mim, para passar seu cartão a alguém. A pontualidade antes garantida não resistiu a tantos chatos aglomerados. O convite frisara: início às 19 horas em ponto. Não parecia piada. Isto é que parece uma: outro homem, enquanto eu ainda estava desacompanhada dos dois outros, quase me ordenou: "Pule para a outra cadeira." Disse-lhe que não entendia o pedido, porque a senhora ali ao lado já pedira para eu abrir um lugar para ele.
O homem retruca: "Esse é para o marido dela". Pois. Aquele não era o marido dela! Seria, então, o quê?
O homem acrescenta quase rude: "É a mesma coisa!" Com minha voz de sempre, respondi: "Não creio que seja a mesma coisa. O senhor pode se sentar ali". Ele se afasta. Então, a herança a caminho seria o frankenstein, que, ao menos, não me pediu para pular assento.

Como imaginar que muitos de nós, com esse nosso comportamento usualmente patético, tenham se tolerado uma vez forçosamente reunidos num campo de concentração?

Uma das formas mais eficazes de abandonarmos essa faceta neurótica resta evidente: focar o sofrimento profundo.Sem ele, viveríamos arranhando a superfície - e a pele uns dos outros, incessantemente, sem nos dar conta disso. Nosso próprio sofrimento profundo faz o milagre da humanização. Melhor, porém, é reviver o profundo sofrimento do Outro. Leiam bem: reviver.

Com fileiras de autoridades diante de mim, também fui tomada por outras divagações. Que panelinha coesa! Todos parecem mesmo provenientes do mesmo saco. Então, concluí com meus botões: É, senhor Russomano destoaria completamente aqui. Odilo tinha mesmo que dar um jeito e tirar Russomano da prefeitura, às vésperas das eleições em que ele tinha mais de 40 porcento das intenções de voto. Várias vezes, tentei imaginar Russomano ali. Não, não dava. Poder ainda se escreve com p de patota, sublinhado com p reforçado de povo pateta.

Não gosto nada do jeito robótico - costumeiro - do arcebispo (Dom Odilo) de bater palmas, menos ainda apreciei o jeito com que ele olhou na minha direção, enquanto ainda estava no palco, após a oração feita com outros líderes religiosos. Odilo adentrou a sinagoga às 19h33, horário do bobo do frankenstein. Quipá vermelho - o único quipá daquela cor discreta'. Cor de quipá diferente não alteraria minha outra maquinação com meus botões: Como o mundo dá mesmo voltas! Um alto membro do Varticano de quipá, numa sinagoga. E numa homenagem às vítimas do Holocausto!

Holocausto. O povo brasileiro não sabe o que é isso. Dê uma volta, pergunte à caixa da cafeteria, da drogaria; à atendente do Mc. Ou ao gerente - a resposta será a mesma.

Como historiadora, vejo que os judeus "preferiram esquecer" que sua contínua
 e atroz perseguição é decorrência de serem - ou de terem
 sido, se minha afirmação anterior é aceita - testemunhas das falsificações
 das Escrituras que a Igreja Católica empreendeu ao longo de séculos.

Exceto pelo minuto de silêncio em alusão ao incêndio em Santa Maria (olha o nome da cidade...), quase tudo foi divinamente barulhento na cerimônia. Sim, houve as palmas bem ao pé do meu ouvido esquerdo. E houve discursos hipócritas. Praxe. Santa Maria. Na Idade Média (acabou?), logo seria decretado o dia do castigo celestial. A ONU nada poderia fazer para evitar que, intencionalmente, logo se confundisse o castigo gaúcho com o outro, da Guerra. O raro leitor entendido, já entendeu tudo com essas minhas parcas palavras.

O prefeito, Fernando Haddad, é exemplarmente um egresso da FEA-USP capa de revista. Ainda por cima, faz questão de divulgar (o que fez em artigo seu publicado pela Folha no dia 25, p. A3) que ele faz aniversário junto com a cidade que agora comanda. Grandão como o homem à minha direita, Haddad, apesar dos cinquenta anos, tem um estranho jeito de quem nasceu ontem que me preocupa. Prometeu paz na cidade. Eu abri a boca (mas só os que estavam próximos me ouviram): "Com tantos homicídios!?" Ninguém reagiu. Nada. Nem uma ruga, cara feia, abano. Nada. Isso em pleno evento em que outros discursos rogaram pelo fim de nossa... indiferença. Discursos muito aplaudidos. Pois, a hipocrisia que ninguém - ou quase ninguém - enxerga.

A indiferença é uma das características mais marcantes dos habitantes de São Paulo. A humanidade, quase totalmente, é indiferente - o Holocausto o demonstrou cabalmente. Mas o paulistano consegue ser indiferente com um silencioso "boa sorte" sádico que, espero, não exista em mais nenhum lugar do mundo. São Pualo não é uma selva de pedra, é um campo de concentração, especialmente em termos de os indivíduos acreditarem que ser indiferente é o segredo para a sobrevivência. Ou para o status quo confortável.

Apesar de repetidamente exortado, o fim à indiferença não desencadeou nenhuma alusão ao papa de Hitler. O papa durante a Segunda Guerra, Pio XII (leia-se, quem passou pela escola, 12), que o Vaticano tentou seriamente tornar santo, para sempre causar reações bastante adversas. Acusam Pio XII de indiferença diante do Holocausto em curso. Indiferença é pouco.

O mundo deu uma baita volta em pouco tempo. Afinal, a Segunda Guerra terminou outro dia. Como bastante instruídos, os judeus sabem o quão fundamental é estar de bem com deus. Ou seja, com o Vaticano. Esse pragmatismo de perdoar o inimigo, contudo, não pode facilmente ser atribuído aos jovens judeus. Isso, não pelo simples fato de serem pouco experientes ainda, mas deivido ao fato de que os próprios judeus, especialmente os da geração jovem hoje, perderam noções essenciais de sua história.

Devem acusar-me de petulância pelo que acabei de afirmar. Mas todo aquele que questiona lúcida, honestamente uma comunidade, acaba vendo o que a comunidade não vê. Aquele Jesus que questionava o judaísmo (há outros 'Jesus" nos evangelhos) é exemplo disso. Como historiadora, vejo que os judeus "preferiram esquecer" (soa melhor assim?) que sua contínua e atroz perseguição é decorrência de serem - ou de terem sido, se minha afirmação anterior é aceita - testemunhas das falsificações às Escrituras (judaicas, claro) que a Igreja Católica empreendeu ao longo de séculos. E a falsificação, apesar da incansável iniciativa de um sem-número de judeus martirizados, acabou  virando a doutrina do "mais antigo e verdadeiro cristianismo".

Pronto. Agora zilhões de cristãos sentem ímpetos irracionais de me agredirem. A verdade incomoda muito, muito mais do que palmas estridentes ao pé do ouvido, quando as palmas não são para você.

Em sua volta à busca de alguém do povo que saiba o que é o Holocausto, aproveite para verificar quantos sabem que os cinco primeiros livros do "Antigo Testamento" perfazem a Lei Judaica, a Torá. Você mesmo não sabia?

Na madrugada do dia 27 (entre 2 e 3 da matina), conversei com um rapaz de 22 anos, gay. Que não sabia o que era o Holocausto. "Os judeus são do bem ou...[ele hesita; gesticula] ou do mal?"

O antissemitismo é arraigado em São Paulo. A comunidade judaica ontem reunida exaltou o acolhimento do Brasil a eles. Isso não elimina o antissemitismo do mapa do raciocínio de um povo sem guia. Sem guia? Perdão. Um povo guiado pelo cristianismo temperado, mais ou menos sutilmente, pela insuperável diferença entre "uns" e "outros". Só o hipócrita nega isso.

Dia de Natal, 2012. Pe. Valeriano, na Igreja Nossa Senhora do Brasil, a mais rica da cidade, declara no sermão: "Tem gente que ainda pensa que o Salvador está por vir. Ele já veio. Nós rezamos muito para que os judeus se convertam".

Na reunião ocorrida no clube A Hebraica, há cerca de um ano e meio (foi em julho de 2011), liderada pelo rabino Michel Schlesinger, que ontem foi o mestre de cerimônias, e pelo mesmo Dom Odilo, fui eu quem perguntou ao arcebispo sobre como a Igreja controla o antissemitismo, porque eu já ouvira sermões com tal conotação, bem perto dali. Odilio declarou seu repúdio e disse que eu poderia bater à sua porta quando isso ocorresse. Com algum atraso, eis-me a bater, pouco após a recordação do Holocausto. Para que tampouco fique esquecido.

Obs: O número de mortos, após termos conhecimento dos relatos da mídia, não pode ser aceito como o divulgado. É bem, bem maior - não menos de oitocentos mortos. Ver nossas postagens sobre esse assunto.
Meu relato sobre essa cerimônia continuará numa segunda parte (desculpe, leitor, mas foi justamente o caso de Santa Maria que levou ao adiamento aqui.)
Meu longo e tenebroso diário: existe alguém no mundo mais marrano do que eu?

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