Quando a comida vira um produto financeiro
--------------------------------- Especulando sobre a fome seria a tradução literal do título deste artigo, na edição em inglês.
(equivalente em inglês, Speculating on Hunger, também postado neste blog)
--------------------------------
O novo diretor-geral da ONU para a Alimentação e a Agricultura, José Graziano da Silva, promete aumentar os recursos destinados à África, a “prioridade” de seu mandato. Mas, além da ajuda pontual – necessária –, será preciso tirar as matérias-primas agrícolas do sistema de especulação financeira
por Jean Ziegler
A estrada é reta, asfaltada, monótona. Os baobás desfilam, a terra é amarela, empoeirada, apesar da hora matinal. Dentro do velho Peugeot preto, o ar é sufocante, irrespirável. Na companhia do engenheiro agrônomo e conselheiro em cooperação da embaixada da Suíça, Adama Faye, e de seu motorista, Ibrahima Sar, vamos em direção ao norte, onde estão as grandes propriedades do Senegal.
Para medir o impacto da especulação dos produtos alimentares, dispomos – estendidos sobre nossos joelhos – das últimas tabelas estatísticas do Banco Africano de Desenvolvimento. Mas Faye sabe que outra demonstração nos espera, mais adiante. O carro penetra no vilarejo de Louga, a 100 quilômetros de Saint-Louis. E, de repente, para: “Vem! Vamos ver minha irmã menor. Ela não precisa das estatísticas para explicar o que está acontecendo”, diz.
Um mercado pobre, algumas barracas à beira da estrada. Montículos de niébé (tipo de feijão), mandioca, algumas galinhas cacarejando nas gaiolas. Amendoim, alguns tomates enrugados, batatas. Laranjas e tangerinas da Espanha. Nem uma manga sequer − uma fruta, no entanto, tão popular no Senegal.
Atrás das mercadorias, vestida com um amplo vestido amarelo vivo e um xale combinando na cabeça, uma jovem mulher conversa com suas vizinhas: Aicha, a irmã de Adama. Ela responde às questões com vivacidade, mas, à medida que fala, sua raiva aumenta. Rapidamente, à beira da empoeirada estrada do norte, um barulhento e alegre agrupamento de crianças de todas as idades, de jovens e de velhas mulheres se forma em nosso entorno.
O saco de arroz importado de 50 quilos custa 14 mil francos CFA.1 Como resultado, a sopa do jantar é cada vez mais líquida. Somente alguns grãos flutuam na água da panela. No mercado, as mulheres compram agora arroz por copo. Um pequeno botijão de gás aumentou, em alguns anos, de 1.300 para 1.600 francos CFA;2 o quilo de cenoura passou de 175 para 245 francos CFA; a baguete, de 140 para 175 francos CFA. O preço da bandeja de trinta ovos passou, em um ano, de 1.600 para 2.500 francos CFA. A situação não difere em relação aos peixes. Aicha está furiosa. Ela reclama de suas vizinhas, muito tímidas, em sua opinião, na descrição que fazem da situação: “Fala para o Toubab o preço que você paga pelo quilo de arroz! Conta para ele, não tenha medo! Tudo aumenta quase todos os dias”. É assim que, lentamente, as finanças matam de fome as populações, sem que estas compreendam os mecanismos sobre os quais repousa a especulação.
UM DISPOSITIVO PERVERTIDO
Tudo começa com uma singularidade, pois o comércio de produtos agrícolas não funciona exatamente como os demais. Nesse mercado, consumimos antes mesmo de vender. A explicação é a seguinte: “O comércio internacional de cereais representa apenas pouco mais de 10% da produção de todas as culturas juntas (7% para o arroz)”, estima o economista Olivier Pastré, antes de concluir: “Um deslocamento mínimo da produção mundial num sentido ou no outro pode perturbar o mercado”.3 Diante da demanda crescente, a oferta (a produção) não somente se fragmenta, mas também fica extremamente sensível à instabilidade climática: seca, grandes incêndios, inundações etc.
É por essa razão que, no início do século XX, em Chicago, apareceram os produtos derivados. Esses instrumentos financeiros, cujos valores “derivam” do preço de outro produto, denominado “subjacente” – tais como ações, obrigações e instrumentos monetários –, foram inicialmente concebidos para permitir aos agricultores do Meio Oeste norte-americano vender sua produção a um preço previamente fixado na colheita – daí a expressão “contrato a termo”. Em caso de queda do preço no momento da safra, o agricultor estava protegido; em caso de alta, os investidores lucravam.
Mas, no início dos anos 1990, esses produtos de vocação prudencial viraram produtos de especulação. Heiner Flassbeck, economista-chefe da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), mostrou que, entre 2003 e 2008, a especulação sobre as matérias-primas por meio de fundos indexados4 tinha aumentado 2.300%.5 No fim desse período, a explosão dos preços dos alimentos básicos provocou as famosas “revoltas da fome”, que sacudiram 37 países. As imagens das mulheres da favela haitiana de Cité-Soleil preparando bolos de barro para suas crianças eram difundidas incessantemente nas telas de televisão. Violência urbana, pilhagens, manifestações de milhares de pessoas nas ruas do Cairo, de Dacar, de Bombaim, de Porto Príncipe, de Túnis pedindo pão para garantir a sobrevivência foram manchete dos jornais durante várias semanas.
O índice 2008 dos preços da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) se estabelecia em média 24% acima daquele de 2007 e 57% acima do índice de 2006. No caso do milho, a produção de etanol norte-americano – distorcido por alguns US$ 6 bilhões de subvenções anuais distribuídas aos produtores do “ouro verde” – reduziu consideravelmente a oferta dos Estados Unidos no mercado mundial do milho. Ora, o milho contribui em parte para garantir a alimentação animal. Sua escassez nos mercados, ao mesmo tempo que a demanda por carne evolui, contribui para o aumento dos preços desde 2006. “Outro importante cereal de subsistência, o arroz, conheceu uma evolução parecida”, afirma o economista Philippe Chalmin, “com preços que, em Bangcoc, passaram de US$ 250 para mais de US$ 1 mil por tonelada.”6 O mundo de repente tomou consciência de que, no século XXI, dezenas de milhões de seres humanos morrem de fome. E de novo o silêncio recobriu a tragédia.
Desde a explosão da crise financeira, a especulação sobre as matérias-primas alimentares só aumentou: fugindo do desastre que eles mesmos tinham provocado, os especuladores – sobretudo os mais importantes, os hedge funds, ou “fundos especulativos” – migraram para os mercados agroalimentares. Para eles, todos os bens do planeta podem se tornar objeto de apostas especulativas ao longo do tempo. Então, por que não os alimentos ditos “básicos”: o arroz, o milho e o trigo que, juntos, totalizam 75% do consumo mundial (50% para o arroz)? Segundo o relatório 2011 da FAO, atualmente somente 2% dos contratos a termo envolvendo matérias-primas acabam de fato na entrega de uma mercadoria. Os 98% restantes são revendidos pelos especuladores antes da data de expiração.
Esse fenômeno alcançou uma proporção tão importante que provocou a inquietação do Senado norte-americano. Em julho de 2009, a instituição denunciou uma “especulação excessiva” sobre os mercados do trigo, criticando, sobretudo, o fato de alguns traders deterem até 53 mil contratos ao mesmo tempo! O Senado também denunciou que “seis fundos indexados estão atualmente autorizados a deter 130 mil contratos sobre o trigo ao mesmo tempo, isto é, uma quantia vinte vezes superior ao limite autorizado para os operadores financeiros padrão”.7
POR UM CONTROLE MUNDIAL DOS PREÇOS
O Senado norte-americano não é o único a se alarmar. Em janeiro de 2011, outra instituição classificou a alta de preços das matérias-primas, sobretudo alimentares, como uma das cinco grandes ameaças que pesam sobre o bem-estar das nações, do mesmo modo que a guerra cibernética ou o porte de armas de destruição em massa por terroristas: o Fórum Econômico Mundial de Davos...
Uma condenação surpreendente, tendo em vista o critério de recrutamento desse seleto círculo. O fundador do Fórum Econômico Mundial, o economista suíço Klaus Schwab, não deixou por menos as admissões a seu “Clube dos Mil” (o nome oficial da reunião): somente são convidados os dirigentes das empresas cujo lucro ultrapasse o bilhão de dólares. Cada um dos membros paga US$ 10 mil de entrada. Somente eles podem ter acesso a todas as reuniões. Entre eles, evidentemente, os especuladores são numerosos.
Os discursos de abertura realizados em 2011, no bunker do Fórum Econômico Mundial, no entanto, apontaram para o problema de forma clara. Eles condenaram com muito vigor os “especuladores irresponsáveis”, que, por pura sede de lucro, arruínam os mercados alimentares e agravam a fome no mundo.
Durante os seis dias seguintes, ocorreu uma sequência de seminários, conferências, coquetéis, encontros, reuniões confidenciais nos grandes hotéis da pequena cidade nevada, para comentar a questão... Mas será verdadeiramente lá, nas salas de jantar dos restaurantes, nos bares, nos bistrôs de Davos, que o problema da fome no mundo vai encontrar os ouvidos mais atentos?
Para vencer de uma vez por todas os especuladores e preservar os mercados de matérias-primas agrícolas dos repetidos ataques, Flassbeck propõe uma solução radical: “Arrancar dos especuladores as matérias-primas, sobretudo as alimentares”.8 Ele pede um mandato específico por parte da ONU. Esse mandato, explica o economista, concederia à Unctad o controle mundial da formação de preços de matérias-primas agrícolas nos mercados. A partir desse momento, somente os produtores, os comerciantes ou os usuários das matérias-primas agrícolas poderão intervir nos mercados a termo. Qualquer um que negociar um lote de trigo ou de arroz, hectolitros de azeite etc. deverá ser obrigado a fornecer o bem negociado. Será igualmente necessário instaurar – para os operadores – um nível de autofinanciamento elevado. Aquele que não fizer uso do bem negociado será excluído da Bolsa.
Se fosse aplicado, o “método Flassbeck” afastaria os especuladores dos meios de sobrevivência dos condenados da Terra e serviria de obstáculo à financeirização dos mercados agroalimentares. A proposta de Flassbeck e da Unctad é defendida com vigor por uma coalizão de organizações não governamentais e de pesquisa.9
O que falta, por enquanto, é a vontade dos Estados.
--
Jean Ziegler
Vice-presidente do comitê consultivo do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Autor de Déstruction massive: géopolitique de la faim {Destruição em massa: geopolítica da fome}, Seul, Paris, 2011
PUBLICADO NA LE MONDE DIPLOMATIQUE-Brasil, FEV 2012
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1097
1 Os números são de maio de 2009.
2 R$ 1 = 286,45 francos CFA.
3 Olivier Pastré, “La crise alimentaire mondiale n’est pas une fatalité” [A crise alimentar mundial não é uma fatalidade]. In: Pierre Jacquet e Jean-Hervé Lorenzi (coords.), Les nouveaux équilibres agroalimentaires mondiaux [Os novos equilíbrios agroalimentares mundiais], Presses Universitaires de France (PUF), Paris, 2011.
4 É um fundo de investimento cujo rendimento é determinado por um índice de referência (carteira de valores, CAC 40 etc.).
5 Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento, Relatório sobre o comércio e o desenvolvimento, Genebra, 2008.
6 Philippe Chalmin, “Le monde a faim” [O mundo tem fome], Bourin Éditeur, Paris, 2009.
7 Paul-Florent Montfort, “Le Sénat américain dénonce la spéculation excessive sur les marchés à terme agricoles” [O Senado norte-americano denuncia a especulação excessiva nos mercados a termo agrícolas], Relatório do subcomitê permanente do Senado dos Estados Unidos responsável pelas pesquisas. Disponível em:
8 Heiner Flassbeck, “Rohstoffe den Spekulanten entreissen” [Arranquem as matérias-primas dos especuladores], Handelsblatt, Düsseldorf, 11 fev. 2011.
9 Sua argumentação é resumida no ensaio de Joachim von Braun, Miguel Robles e Maximo Torero, “When speculation matters Washington” [Quando a especulação importa para Washington], International Food Policy Research Institute (IFPRI), Washington, 2009.