Monday, March 19, 2012

Para procuradores da República, nada; para a corte máxima, tudo

O editorial principal da Folha de S.Paulo de hoje, 19 de março, embaralha, faz picadinho de uns, lança para o alto sem critério - como um liquidificador. A papinha resultante é ruim, mas pretende fazer crescer ainda mais, aos olhos de muitos, uma camada muito bem localizada.

Sobretudo, a linguagem do texto incita mentes preguiçosas a enrijecerem ideias simplistas e escravas - talvez sem o saberem - de poderosos sedentários, sempre reticentes a deixar seus tronos. Mesmo em repúblicas pujantes. Mesmo para pegar um ar de realidade, presente e passada - exceto em períodos de campanha ou de lobby inadiável.

O título cheira à receita da vovó - "Respeito à Anistia".

Para toda uma nação adestrada, em sua quase totalidade, a obedecer e jamais pensar livremente, respeito age como uma poção mágica. Invoque respeito, e ninguém o desafiará.

Mas há quem pense. Então, respeito soa de pronto suspeito - aí tem coisa... E escassez. Escassez de ideias honestas e abertas.

No título, ao lado de respeito temos, ainda por cima, anistia. Respeitamos, claro, ordens. Adoramos receber ordens! Respeitamos tudo que tem 'nome', 'quantidade de gente' e 'marca importada'. Depois da farra, respeitamos a Deus. Mas, respeitar a anistia?

O povo não sabe o que é essa tal coisa. Mas o Exército sabe. O texto do jornal fala para este, não para aquele. Afinal, respeitar é mais útil do que pensar livremente, especialmente em lugares que até Deus duvidaria (como uma redação de jornal).

Leitor, voce não entendeu nada ainda. Será que estou escrevendo para o jornal, sem considerar o povo? Talvez. Mas não é isso o que pretendo. Portanto, vou explicar.

Gente, o tal editorial faz picadinho de procuradores (pessoal do Ministério Público), por eles terem denunciado um coronel de reserva do Exército. Por denunciarem-no por sequestro qualificado de cinco pessoas, durante a guerrilha do Araguaia. Trata-se do tal Curió. O cartoon de ontem, na mesma página, A2, do jornal em que hoje está publicado o editorial, trouxe o título Araguaia. Caveiras amontoadas numa grande cova rasa gritam "filho?" "pai?" e outros parentescos, e um milico berra em resposta": "Não!"[1].

O editorial de hoje tenta justificar aquele estridente não. Tenta, forçando a barra. A começar pelo título invocando respeito. A prosseguir para declarar que a tese dos procuradores é "feita sob medida para burlar o entendimento da Corte". Burlar é superpesado; é uma distorção. E o povo não sabe o que é burlar. Mas o Exército sabe.

Burlar é fraudar, enganar. Também pode ser zombar, fazer pouco de. Em qualquer dos dois casos, é pesado. E que "entendimento da Corte" os procuradores são acusados, pelo jornal, de burlar? A Corte (o Supremo Tribunal Federal, STF) decidiu ("entendeu") que a Lei da Anistia é bonita e cheirosa. Ou seja, válida, constitucional, tudo de bom. Isso foi no ano passado [2]. Ah, a Lei de Anistia blinda, perdoa, todos os que cometeram crimes "necessários" durante a ditadura, mais especificamente, de 1964 a 1979 [3]. Somos o único país da América Latina a ter uma lei dessas [4]. Isso o editorial não diz.

O editorial enaltece o poder do STF como se esse poder não pudesse ser questionado, como se fosse inatingível e ilimitado. Juristas importantes já declararam que estamos num totalitarismo judiciário, ou perto disso.

O já evidente é que democracia não é nosso forte. Democracia, no Brasil, sempre expõe um ponto fraco nosso.

O editorial do jornal exala que a corte é Máxima, pesada como essa palavra aí, do lado esquerdo. Os procuradores, fracos, passíveis de porretes verbais em espaço midiático de peso. E que o Exército, o Exército, gente, faz do seu não um não!, custe a democracia em tese que custar.

O argumento dos procuradores é tachado de "engenhoso", enquanto o raciocínio deles, de "tortuoso". A honestidade do pensar acolheria, com ótima disposição, uma discussão sobre aquele argumento. Mas o editorial foge dela, com zombaria. Alegar, como fazem os procuradores, que o sequestro, em 1974, de cinco pessoas (corpos não encontrados) perdura até hoje incita, de pronto, a avaliação de que não há lógica. Mas a alegação não se reporta a um sequestro comum, tampouco quer ser tratado como se não houvesse a História. E como se tortuoso não fosse o próprio Judiciário brasileiro. E como se democracia brasileira não remetesse a um oximoro (uma contradição de termos, como seria a expressão ditadura democrática).

Os procuradores defendem que os crimes não estão cobertos pela Lei da Anistia. O editorial, que logo chamou essa tese de burla, ainda afirma que o argumento dos procuradores é um subterfúgio que "consumirá tempo e recurso para nada". Ao ouvir sobre esse consumo, o povo entende. Ao adiantar que a Corte não alterará seu "entendimento", o editorial parece temer que isso ocorra. Quer o povo entenda, ou não.

Após tantas acusações sem raciocínio, despejadas com o exercício de um discurso cafona afinado com o autoritário "ordem e progresso" - em uma república que mal alcançou significativamente quer um, quer o outro, jamais conciliou ambos -, o editorial avança como se num campo de batalha: a iniciativa dos procuradores "torna-se perniciosa no campo político". Um campo hoje mais minado ainda.

O que isso quer dizer? Diz o editorial que os procuradores atrapalham a Comissão da Verdade, como se ela já não estivesse totalmente atrapalhada bem antes dessa ação do Ministério Público. Como um liquidificador, o editorial mistura tudo, sem critério. Ao mesmo tempo que defende
"clarear o registro histórico", o editorial sentencia o que a Comissão teria de esclarecer - crimes, entre eles os tais sequestros - como "página virada". Raciocínio tortuoso? Pois.

E fica ainda mais tortuoso: repudiar aqueles crimes - e, completamos, com o fim de punir o autor deles, como almeja o Ministério Público - seria "um pretexto" para impedir um "objetivo maior" que é o tal "clarear" da Comissão (evitamos acrescentar da Verdade, por motivos óbvios agora).
Parece uma burla? Eis o trecho ipsis litteris do editorial:

O escopo da comissão é dar acesso a documentos ... para clarear o registro histórico. Não se deve sacrificar esse objetivo maior, ainda que a pretexto de repudiar crimes contra direitos humanos que a Lei da Anistia tornou página virada.

Tudo bem misturadinho, como disse eu no início, incita mentes mal pensantes a comprar ideias fajutas. Mas, quando se passa a mistura pela peneira do pensar bom e honesto, restam bem separados os fiapos e a rala papinha, preparada para burlar a turba que tenta entender a História, enquanto, mais ou menos veladamente, arrotam outros o mesmo amém de sempre, aos mesmos de sempre.

Nota: Desculpem por não ter encontrado o sinal "chapeuzinho", o circunflexo, no teclado. Evitei-o ao máximo.
Mariangela Pedro
19 de março de 2012

Adendos em 20.03 (números abaixo correspondem aos assinalados no texto):

[1] O cartoon grafa "NO!". A interpretação do uso do ingles (falta acento...) pelo militar brasileiro resta em aberto. Por que o cartoonista assim o faz? Minha hipótese é de que essa negativa tem repercussões internacionais - o mundo "central" está ciente do que acontece aqui. Estamos sendo cobrados pela OEA quanto à Lei da Anistia (ver nota 4, abaixo).

[2] Erramos. O STF confirmou a Lei da Anistia em 2010 (29 de abril), em resposta a ação proposta pela OAB, solicitando justamente que a Lei de Anistia não incluísse crimes praticados por agentes da ditadura.

[3] O período correto é de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

[4] A Wikipedia, página "Lei da Anistia", diz que "ainda está pendente processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil por não ter revisado a lei de Anistia".

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