...parece-me que me sentia satisfeita com o que via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca me tinha falado de amor maternal por Ele. E assim como meu amor por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Toda trêmula,consegui continuar a viver. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentia minutos antes e o rato. Espantava-me que um rato tivesse sido meu contraponto.
De que Deus estava querendo me lembrar? Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde menina me alucina e persegue. Então era assim?, eu a andar pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar seu rato?
Deus era bruto.Então a vingança dos fracos me ocorreu: vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo é também rato. E eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. É porque fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.
Porque quero amar o que amaria, e não o que é. E é porque não sou eu mesma, e então o castigo é amar o mundo que não é ele. É porque não quis o amor solene - sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda.
Só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que não poderei pegar num rato sem morrer minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não sabe, nem vê.
Porque o formalismo não tem ferido minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo.
Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi meus crimes. Só porque contive meus crimes, eu me acho de amor inocente. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza?
Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida.
Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e a meu contrário quero chamar de Deus.
Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
Clarice Lispector, de "Aprendendo a Viver, Rocco, 2004, trechos p. 137-140