Wednesday, June 23, 2010

O evangelho segundo Jesus Cristo - trecho de Saramago

Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é assim, une facilmente as diferenças.
... Deus hesitou, e depois, em tom cansado, disse, Ainda há a Inquisição, mas dela, se não te importas, podíamos falar noutra altura,
Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago


O que vem depois da vírgula, depois de "altura", é fala de outro, Saramago vai emendando, emendando... Até em diálogos, ele não segue os padrões, não se vale dos travessões ou aspas, nem dos parágrafos, Não usa tampouco pontos de interrogação. Há um ponto final aqui e outro acolá, E ninguém entende nada, fingindo que entende,
Mais ou menos como fiz eu mesma neste instante.

Vou cometer o pecado de "consertar" Saramago no diálogo que se segue ao trecho apresentado acima, extraído de seu Evangelho Segundo Jesus Cristo. Lamento ter de recorrer a tal violação da obra de Saramago. Mas, do original, não haverá quem consiga discernir Deus, o diabo que é também chamado de Pastor e o Filho, também Jesus, que é quem primeiro dialoga com Deus. Só a confusão advinda do Pastor ser o diabo já torna o texto deveras enigmático para quase todos. Como Pastor pode ser o diabo? Responda você. Mas, no trecho de Saramago que reproduzimos abaixo, o diabo lembra a todos que ele era Luz, por isso Lúcifer, e que caiu do céu. Mas então se arrepende e quer voltar; Deus não aceita tal proposta. E, ainda, declara ao seu Filho que a Inquisição é um mal necessário. Isso choca? Lembre-se de que os responsáveis pela Inquisição alegam falar em nome de Deus até hoje.

Veja por que Deus rejeita a proposta do Pastor/diabo, como o Filho tenta evitar a Inquisição, enquanto Deus ele próprio frisa que os primeiros morreram por crer no Filho, mas a Inquisição condenará os que duvidam do Filho e que ninguém ouse suspeitar de coisa alguma. Assim, entenda por que a Igreja, em sua voz oficial, açoitou Saramago com dura condenação até na hora de sua morte, desprezando a homenagem tolerante da igreja católica em Portugal.

Repito, no original não há o formato verificado abaixo, de cada fala apartada da outra. As sentenças aparecem uma a seguir da outra. Quebrar o texto é a violação que cometo em relação ao texto original. A ausência dos pontos de interrogação (há vírgula no lugar) é mantida, como no original.


Que é a Inquisição,
A Inquisição é outra história interminável,
Quero saber,
Seria melhor que não soubesses,
Insisto,
Vais sofrer na tua vida de hoje remorsos que são do futuro,
E tu,
não, Deus é Deus, não tem remorsos,
Pois eu, se já levo esta carga de ter de morrer por ti, também posso aguentar os remorsos que deviam ser teus,
Preferia poupar-te,
De facto, não tens feito outra coisa desde que nasci,
És um ingrato, como são todos os filhos,
Deixemo-nos de xingamentos, diz-me o que vai ser a Inquisição,
A Inquisição, também chamada Tribunal do Santo Ofício, é o mal necessário, o instrumento crudelíssimo, com que debelaremos a infecção que um dia, e por longo tempo, se instalará no corpo da tua Igreja por via das nefandas heresias em geral e seus derivados e consequentes menores, e que se somam umas quantas perversões do físico e do moral, o que, tudo reunido e posto no mesmo saco de horrores, sem preocupação de prioridade e ordem, incluirá luteranos e calvinistas, molinistas e judaizantes, sodomitas e feiticeiros, mazelas algumas que serão do futuro, outras de todos os tempos.

E, sendo a necessidade que dizes, como procederá a Inquisição para reduzir esses males,
A inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias,
Condenará a quê,
Ao cárcere, ao degredo, à fogueira,
À fogueira, dizes,
Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares e milhares de homens e mulheres,
De alguns já me tinhas falado antes,
Esses foram lançados à fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-âo por duvidarem,
Não é permitido duvidar de mim,
Não,
Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus,
O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho,
Morrerão milhares,
Centenas de milhares,
Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados  cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa,
Não por tua culpa, por tua causa,
Pai, afasta de mim este cálice,
Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória,
Não quero esta glória,
Mas eu quero esse poder.
...
Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.

O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi Pastor quem falou,

Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus,
e Deus surpreendido,
Uma porposta, tu, e que proposta vem a ser essa,
o tom era irônico, superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer que não fosse o Diabo, conhecido e familiar de longa data.
Pastor fez um silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou,

Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta,
E isso incomoda-te,
Não devia incomodar-me, uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais do que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será  mais povoado do que o céu,
Então de que te queixas,
Não me queixo, proponho,
Propõe lá, mas depressa, que não posso ficar aqui eternamente,
Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabes, que o Diabo também tem coração,
Sim, mas fazes mau uso dele,
Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos de terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar no mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade,
E por que haveria eu de receber-te e poerdoar-te, não me dirás,
Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui e hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre,
Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias,
Não me aceitas, não me perdoas,
Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora,
Por quê,
Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria morte do outro,
É a tua última palavra,
A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei.

Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus,
Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus,
E, levantando-se, ia passar uma perna por cima da borda do barco, mas de súbito suspendeu o movimento e disse,
Tens no teu alforge uma coisa que me pertence.
Jesus não se lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali estava, embolado, aos seus pés,
Que coisa, perguntou,
e, abrindo-o, viu que dentro não havia mais do que a velha tigela negra que de nazaré trouxera.
Isto,
Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos,
Um dia voltará ao teu poder, mas tu não chegarás a saber que a tens.
Meteu a tigela por dentro da grosseira roupa de pastor que vestia e desceu para a água. Não olhou Deus, apenas disse, como se falasse a um auditório de invisíveis,
Até sempre,
já que ele assim o quis.
Jesus segui-o com os olhos, Pastor ia-se afastando... à distância era outra vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se os resfolgos bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade em perceber que havia também ali um som de medo, não de afogar-se, (que ideia, o Diabo, acabamos de sabê-lo mesmo agora, não acaba), mas de ter de existir para sempre.
Já Pastor se perdia na fímbria esgarçada da névoa quando a voz de Deus de repente soou, rápida, como quem já vai de partida,
Mandarei um homem chamado João para te ajudar, mas terás de convencê-lo de que és quem dirás ser.
Jesus olhou, mas Deus já ali não estava.
p. 326-329

Mesmo assim, destacando as sentenças, foi difícil para você. Eu sei. Muita TV, videogame e ínfima leitura boa e reflexão. Azar o seu. E, claro, se você não consegue apreender o texto acima, ainda mais longe está de entender os evangelhos, o que você chama de Palavra de Deus. O que segues é a correnteza. Azar o seu.
                                                                                                                                                  
                                                        

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