1. Comecemos por ponderar sobre a "repetição".
A comunidade dos católicos não aprendeu com o que se passou nos Estados Unidos. Uma vez que tão impressionante onda de casos, com tamanha repercussão tenha ocorrido, a própria comunidade dos católicos fica na berlinda. Tantos casos faz-me deduzir que há muitos pais - pais católicos - não próximos afetivamente dos filhos, para que notem que estes estão sendo vítimas de crime tão perturbador.
A Igreja acoberta. E a comunidade católica, veladamente agradecida, também prefere não ver.
Pelo que ouvi, as denúncias recentes são de adultos, feitas décadas após terem sido molestados, não de pais. Assim, o "choque" é sentido como se viesse de fora, não de dentro. Vem de alguém que cresceu com o trauma para abandonar, por fim, a obrigação de ir à igreja. Para sempre.
2. Tal sensação ecoa nos termos e no tom da carta de Bento XVI aos Católicos Irlandeses. Ele se apresenta como o Pastor da Igreja, universal. (Para mim, a vírgula, na tradução, é obrigatória, porque, ao se deslocar para depois do nome, o termo universal, sem a vírgula, pode implicar conotação ligeiramente diversa da do original, em inglês.) Depois, o papa se refere sempre à Igreja na Irlanda, como se fosse outra coisa, coisa à parte. Cálculo puro. E isso é temerário numa situação dessas: um discurso ostensivamente calculado.
Destaco este trecho da referida carta:
At the same time, I must also express my conviction that, in order to recover from this grievous wound, the Church in Ireland must first acknowledge before the Lord and before others the serious sins committed against defenceless children. Such an acknowledgement, accompanied by sincere sorrow for the damage caused to these victims and their families, must lead to a concerted effort to ensure the protection of children from similar crimes in the future.
Ao mesmo tempo, devo também expressar minha convicção de que, para se recuperar dessa ferida muito grave, a Igreja na Irlanda deve, primeiro, reconhecer, ante o Senhor e ante outros, os sérios pecados cometidos contra crianças indefesas. Tal reconhecimento, acompanhado por sincero pesar pelo dano causado a essas vítimas e suas famílias, deve conduzir a um esforço coordenado para assegurar, no futuro, a proteção de crianças quanto a crimes semelhantes. [Minha tradução]
No trecho acima, percebo claramente que o pontífice "isola" a Igreja da Irlanda e, mais, dá respaldo ao que alego no item 1. É a própria Igreja na Irlanda que deve reconhecer os "sérios pecados" para "assegurar a proteção das crianças" no futuro. A maioria interpreta como "Igreja" apenas a hierarquia (bispos, etc.). Mas a carta que contém tal trecho é dirigida aos católicos irlandeses. Foi distribuída aos fiéis. A "grave ferida" não é apenas da instituição, mas da comunidade como um todo. Incrível me parece que ninguém, nenhum pensador, jornalista, ninguém tenha tocado neste aspecto. Não estou isentando a hierarquia, mas estou fazendo o mais importante: fazendo com que a comunidade acorde. Senão, a repetição ganhará conotação de eternidade.
3. A mídia dispara na hierarquia, na instituição. A massa, católicos e não católicos, clama pela punição (o que é justo e próprio) e foca o fim do celibato. Alguns intelectuais defendem a instituição. O que mais aberta e firmemente defendeu a Igreja foi o sociólogo da USP, José Martins de Souza, em seu artigo publicado, domingo, no Estadão. Comento esse artigo em outro texto, porque requer espaço próprio. Mas adianto que o Estadão não é pela defesa. Publicou a matéria, mas deu a ela um titulo acusatório e pinça, para chamada, uma sentença do texto de Martins que, fora do contexto, é muito negativa.
4. Tudo isso, contudo, é inócuo. A punição não virá (não veio da outra vez); a defesa é assustadora, mas é como chover no molhado, uma vez que a própria comunidade dos católicos faz vistas grossas, oferecendo, assim, a maior defesa possível a toda a atrocidade em questão. A mídia dispara porque, talvez, queira dar a impressão de que podemos malhar, nas vésperas de um Sábado de Aleluia, como se fosse Judas, a Igreja todo-poderosa... Não somos laicos, sequer lúcidos. Disparar, portanto, é inconsequente. Disparamos, ninguém pode negar, de joelhos; alguns, de cócoras. Espero que a mídia esteja de armadura blindada... o tiro ricocheteará.
5. A Folha deu um parecer amplamente favorável à carta, em matéria que também informava que a tal carta tinha sido considerada decepcionante pelos destinatários. "A carta de Bento XVI... é objetiva e contrita", escreveu a repórter da Folha em "Papa pede em carta perdão por abusos na Irlanda" (21.03.2010, p A21).
6. O celibato não cairá. Lembro da ocasião da investidura de Cláudio Hummes como Prefeito da Congregação para o Clero. Ele, de partida para Roma, declarou que o celibato não era questão doutrinária, mas apenas disciplinar. Ou seja, não advém da Palavra de Deus, mas é uma determinação da instituição e, assim, alegava Hummes, era mais facilmente passível de alteração. No dia seguinte, ele se retratava. Pois. O celibato não cairá porque a Igreja, internamente, já é uma comunidade amplamente gay. A maioria do clero é gay e gosta disso. Assim, eles não querem homens de família por lá. Notou como soa estranho? Homem de família como padre católico - nada a ver. Sim, há os que fazem filhos por aí. Não são de família. Só fazem filhos. E, provavelmente, são bissexuais. Sexo bom na Igreja, praticado por seus membros. Isso não soa delírio? Justamente porque a realidade que a Igreja construiu é de sexo depravado, uma mentalidade doentia. Sexo é só para procriar. Mulheres são vistas sadicamente. E crianças.
7. Como se muda isso? Não se muda! Como diz o próprio papa, a proteção às crianças tem de vir dos católicos. Vindo do papa, isso é sádico, uma vez que esse Pastor sabe que a maioria das famílias depende psicologicamente da Igreja, estando "enfiadas" na tradição. Não conseguem se precaver diante de tal ameaça, o que lhes parece o mesmo que "perder a fé". Então, clama o papa, rezemos. Sadismo.
Quando se vê de fato o problema, ele fica muito complicado. Mas a sentença "complicado" não pode ser o ponto final, como tanto se constata hoje.
8. Comunidade católica, somos responsáveis por nossas crianças! Um padre não é um cara normal. Não pode ser! Ele tem de se esconder em relação a alguma coisa. Tem de esconder filhos; ou tem de esconder seus amantes; ou tem de esconder... Ou tem de esconder tudo isso e mais alguma coisa.
Um católico escreveu no site da Veja, repreendendo os que pedem o fim do celibato: "A Igreja não obriga ninguém a ser padre. E todo o mundo sabe que a Igreja exige a castidade".
Sim, a igreja não obriga a ser padre. É a família que o faz. São, muitas vezes, as condições materiais da família. Ser padre desponta como uma carreira e tanto. Outras vezes, o jovem ou pessoa que se vê incapaz de enfrentar a vida, como um leigo, corre para a Igreja. Não, ela não obriga. Ela só está lá, todos os dias, santos ou profanos, de portas bem abertas. E, uma vez lá, seja como padres, seja como fiéis, não conseguimos mais sair. Grave pecado: não reconhecemos isso.
9. Os que reclamam dos procedimentos da Igreja diante dos crimes desconhecem a existência do Código de Direito Canônino. Sim, meu adulto-crianção, existe tal código na sua Igreja; embora jamais, jamais seja citado nos jornais. (É para a bela adormecida não despertar antes de o príncipe chegar, no dia de...) O Código está no site do Vaticano, aqui:
http://www.vatican.va/archive/ENG1104/_INDEX.HTM
Um dos capítulos mais curtos - se não o mais curto de todos - é justamente aquele no qual se pode enquadrar os abusos contra crianças:
BOOK VI. SANCTIONS IN THE CHURCH
- PART II. PENALTIES FOR INDIVIDUAL DELICTS
- TITLE VI. DELICTS AGAINST HUMAN LIFE AND FREEDOM (Cann. 1397 - 1398)
O titulo VI, Delitos contra a vida humana e a liberdade, possui apenas dois itens bem breves, algo inusitado em todo o referido código. Esse titulo está na Parte II - Penalidades por delitos do indivíduo, do Livro VI - Sanções na Igreja.
Para você não se perder no Código, aqui estão os dois itens; o segundo (1398) é específico quanto ao aborto - sentença automática de excomunhão para quem o pratica.
Can. 1397 A person who commits a homicide or who kidnaps, detains, mutilates, or gravely wounds a person by force or fraud is to be punished with the privations and prohibitions mentioned in ⇒ can. 1336 according to the gravity of the delict. Homicide against the persons mentioned in ⇒ can. 1370, however, is to be punished by the penalties established there.
Can. 1398 A person who procures a completed abortion incurs a latae sententiae excommunication.
O abuso sexual pode ser subentendido em "gravemente fere uma pessoa pela força" que, continua o cânon, é para ser punido com as privações e proibições mencionadas no cânon 1336, de acordo com a gravidade do delito. Portanto, tudo conforme estabelecido pelo Código. E o cânon 1336 não fala de prisão:
Can. 1336 §1. In addition to other penalties which the law may have established, the following are expiatory penalties which can affect an offenderperpetually, for a prescribed time, or for an indeterminate time: either
1/ a prohibition or an order concerning residence in a certain place or territory;
2/ privation of a power, office, function, right, privilege, faculty, favor, title, or insignia, even merely honorary;
3/ a prohibition against exercising those things listed under n. 2, or a prohibitionexercising them in a certain place or outside a certain place; these prohibitions are never under pain of nullity; against
4/ a penal transfer to another office;
5/ dismissal from the clerical state.
§2. Only those expiatory penalties listed in §1, n. 3 can be latae sententiae.
1/ a prohibition or an order concerning residence in a certain place or territory;
2/ privation of a power, office, function, right, privilege, faculty, favor, title, or insignia, even merely honorary;
3/ a prohibition against exercising those things listed under n. 2, or a prohibitionexercising them in a certain place or outside a certain place; these prohibitions are never under pain of nullity; against
4/ a penal transfer to another office;
5/ dismissal from the clerical state.
§2. Only those expiatory penalties listed in §1, n. 3 can be latae sententiae.
Segundo o parágrafo 2, apenas as penalidades do item 3 podem ser automáticas. Mas há, ainda, outra restrição para a aplicação desse item, e também, do item 2:
Can. 1338 §1. The privations and prohibitions listed in ⇒ can. 1336, §1, nn. 2 and 3, never affect powers, offices, functions, rights, privileges, faculties, favors, titles, or insignia which are not subject to the power of the superior who establishes the penalty.
Se quem estabelece a penalidade não tiver poder sobre o posto, função, regalias... do punido, este não pode ser privado deles ou ser proibido de exercê-los.
Sobram os itens 1, 4 e 5: proibição ou determinação relativa à residência em determinado lugar (item 1); transferência para outro setor (item 4) e dispensa do status clerical (item 5).
10. Decorre que o item 5, o mais severo, não foi, ou não é, mais frequentemente aplicado em função de a Igreja não considerar o abuso tão grave, ante os demais delitos previstos no mesmo item (cânon), como o homicídio e o aborto. Ou seja, diante de um homicídio por um religioso, o máximo previsto no Código Cânino é a dispensa do status clerical.
Há outro cânon tratando de "uso de força física" - por qualquer pessoa - contra o papa, bispos e outros religiosos, inclusive como desprezo pela fé, Igreja, poder eclesiástico... Nesses casos, pode haver outra pena, mais grave, determinada por juiz (de tribunal eclesiástico).
Há outro cânon tratando de "uso de força física" - por qualquer pessoa - contra o papa, bispos e outros religiosos, inclusive como desprezo pela fé, Igreja, poder eclesiástico... Nesses casos, pode haver outra pena, mais grave, determinada por juiz (de tribunal eclesiástico).
Constatamos, assim, no Código em questão, o descompasso entre a punição aos delitos de religiosos contra as pessoas e a punição a que fica sujeita uma pessoa, religiosa ou não, que ataque a Igreja e seus membros.
11. O escândalo é nosso. Da sociedade. Que, neste país, é católica em peso, com tudo o que católica representa - e isso está longe de significar efetiva salvação, verdade, vida consciente.
12. O Vaticano não está abalado. Tem-se, se tudo isso, um grito; algo como um grito herético em pleno auto-de-fé; que nem se ouve.
Ninguém quer ouvir, admitir o essencial; reconhecer que apoiamos tudo o que acontece na Igreja, quer com omissão, quer apenas rezando, quer acusando A,B,C - sem olhar para nós mesmos.
Cansamos de dizer: "Isso há em todo o lugar", o que denota covardia. Pedofilia é sinônimo.
Já senti, drasticamente, a covardia que é todo o sistema da Igreja Católica. Ver um padre como um ser sobrenatural é covardia. Há mulheres que não tomam a hóstia de outra mulher, de uma ministra da comunhão. É covardia não ver a tamanha pressão, interna e externa, que um padre sofre, sem poder namorar ao ar livre, sem poder sorrir para uma mulher por quem ele se encantou, sem poder ser um homem que espirra, tosse e... tem de ejacular.
Covardia, com covardia, se paga.