Wednesday, March 17, 2010

Lembram-se da Vivi, que estava tomando medicamentos tarja preta? Quando voltei a falar com ela, outro dia, disse-me, sem nenhum vestígio de entusiasmo, que estava "parando", tomando os remédios "apenas" em dias alternados (dia sim, dia não). E disparou, como se lamentasse por a última caixa, os últimos comprimidos estarem próximos: "Eu me sinto tão bem com os remédios..."

Dos artigos que li sobre as formas em voga de diagnóstico e tratamento da depressão (e da "síndrome do pânico", o outro lado da mesma moeda), o abaixo é o que mais bem avalio. A linguagem não é muito fácil, para quem está sempre "cansado" para ler. Mas vale o esforço.



Os novos dependentes
Confusão entre os conceitos de depressão e melancolia pode tornar o indivíduo "escravo" do mercado farmacêutico

JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

publicado na Folha de S.Paulo, caderno mais!, 11/10/2009 



O questionamento da formulação da psiquiatria biológica, no que se refere à depressão, começa a se realizar no campo das neurociências. Eu diria que esse questionamento chegou tarde, pois aquela se difundiu no espaço social como uma evidência insofismável, fazendo crer à população que a condição depressiva seria não apenas uma anomalia como também uma patologia psíquica, decorrente da desregulação dos neuro-hormônios no sistema nervoso central.

Assim, a depressão seria o signo infalível de uma enfermidade nervosa, a ser devidamente submetida à intervenção psicofarmacológica. Em decorrência disso, a prescrição de antidepressivos se realizou em escala global, como uma nova panaceia para possibilitar a felicidade ampla, geral e irrestrita de todos os desesperados do planeta.

Quanto ao Brasil, o discurso psiquiátrico retomou midiaticamente o enunciado pertinente de Caetano Veloso - de que de perto ninguém é normal - para propor a otimização de antidepressivos para todos, pois a tristeza poderia se camuflar de maneira incipiente nas pequenas dobras do espírito e ser, assim, preventivamente debelada em estado nascente.

Foi nesse mesmo comprimento de onda discursiva que a Organização Mundial de Saúde (OMS) diagnosticou o aumento da incidência da depressão no mundo inteiro e fez ainda o prognóstico preocupante de que essa será uma das enfermidades mais frequentes no futuro próximo.

Sociedade performática
Fala-se menos, nessas afirmações peremptórias e supostamente científicas, sobre os interesses da indústria farmacêutica que estão aqui envolvidos, à medida que foi na conjunção íntima com essa indústria que o discurso psiquiátrico passou a propor uma leitura neurocientífica da depressão e de outros males do espírito.

O que se pretende com isso é transformar esses males em doenças nervosas, enfim, de forma que a singularidade do desejo e da dor humanos seja reduzida à condição biológica do sujeito neuronal.

Ao lado disso, é preciso evocar ainda que a disseminação na prescrição de antidepressivos e de outros psicofármacos se inscreve num projeto sociopolítico mais amplo, em que o incremento da performance das individualidades é a única coisa que interessa aos imperativos da sociedade moderna avançada (Guy Debord). [ver nota desta blogueira, no fim do texto]

Nessa perspectiva, as oscilações do humor, a angústia e as demais formas de sofrimento psíquico das individualidades perturbariam os imperativos performáticos dos agentes sociais, devendo assim ser regulados prontamente pela alquimia psicofarmacológica. O que o sujeito possa estar balbuciando com tais dores psíquicas não há nenhum interesse em saber e nenhum espaço dialógico é aberto pela psiquiatria para que aquele possa se anunciar. A demanda de subjetivação foi, assim, abolida da prática psiquiátrica, em conjugação com a suspensão do discurso do paciente.

Como já dizia Platão nos tempos clássicos da pólis grega, tal modelo de prática médica, sem linguagem, seria voltado para os escravos, e não para os cidadãos livres.

Portanto o que é mais inquietante nesse projeto psiquiátrico é a proposição axial de que todos os cidadãos do mundo pós-moderno seriam reduzidos à condição de escravidão, pois não poderiam mais ter acesso ao discurso e à subjetivação, nesse processo de medicalização ilimitado da dor humana.

Desde "Luto e Melancolia" (1917), Freud enunciou uma leitura rigorosa da melancolia, articulando esta com a experiência da perda, na medida em que a perda se transforma para o sujeito num estado de luto patológico. Assim, se perder alguém ou algo deixa a todos tristes, isso não quer dizer que qualquer depressão se transforme necessariamente numa melancolia.

Pelo contrário, a tristeza incita o sujeito a um trabalho de elaboração psíquica sobre aquilo que foi perdido, conduzindo-o, pela fragilização em que foi lançado, à diminuição de sua impotência e consequentemente a seu enriquecimento simbólico. Vale dizer, não poderia existir nem subjetivação nem simbolização sem as perdas e as depressões correlatas.

Essa leitura de Freud se baseou num ensaio prévio de seu discípulo Abraham, que em 1912 iniciou a investigação sistemática da psicose maníaco-depressiva, numa perspectiva psicanalítica. Posteriormente, o mesmo Abraham deu outros passos decisivos na elucidação dessa perturbação psíquica, estabelecendo em 1924 a relação existente entre essa experiência mental e a história libidinal do sujeito.

Diferenciação
Foi pela sua inscrição nessa tradição teórico-clínica que Melanie Klein (1882-1960) estabeleceu a importância crucial no psiquismo do que denominou "posição depressiva", em oposição à posição esquizoparanoide, para sustentar como a posição depressiva seria fundamental para a produção simbólica e para o engendramento dos processos de subjetivação no psiquismo.

Nessa perspectiva, é preciso diferenciar devida e rigorosamente as depressões -que a existência produz necessariamente em todos nós- da melancolia, na medida em que essa evidencia impasses importantes na elaboração da experiência da perda. Algo da ordem do narcisismo estaria aqui em pauta.
Misturar essas diferentes cartas do jogo psíquico, com o nome de depressão, é nos destinar a todos à condição de escravidão no mercado da medicalização contemporânea. O que implica, é claro, possibilitar ao sujeito a invenção de novas ferramentas simbólicas, para que possa forjar outras modalidades de subjetivação.

O que não é possível é nos fazer crer que não exista experiência psíquica sem perdas e delinear assim a existência humana como estando sempre marcada pelo crivo do sujeito, como se este pudesse sempre ser performaticamente vencedor. Enfim, o que a psicanálise pode nos oferecer, no que tange a isso, é a possibilidade de transformar as perdas dos indivíduos em produção simbólica e novas formas de subjetivação.

JOEL BIRMAN é psicanalista e professor da UFRJ e da UERJ.

NOTA: Guy Debord foi um escritor francês (faleceu em 1994). Encontrei um de seus livros online: A sociedade do espetáculo. Uma edição digital que parece ter sido cercada de cuidados. 

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html

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