Thursday, December 24, 2009

PM - PAVOR À MATURIDADE - outro dia, o Largo de São Francisco (USP) foi tomado pela polícia

Elaborei o texto a seguir em reação ao artigo “Em defesa da educação pública e da verdade”, de Lucia Stumpf e Ricardo Leito Ribeiro, publicado na Folha, p. A3, em 28.08.2007. Sim, 2007. Eu não tinha blog então.

PM - Pavor à Maturidade


de manuscrito de 29 de agosto de 2007

“Eu recebo ordens; sou mera estagiária”. O sadismo daquele que compactua com o autoritarismo é bem maior do que a própria ambição capitalista (...) Nesse contexto, a USP deixa de ser até mesmo dos sujeitos com carteirinha válida.


Desde que o Mestre se superou em sua peculiar combinação de ironia e compaixão ao provocar: “Pai, perdoai a eles, pois não sabem o que fazem”, uma opção definitiva resultou amplamente reconhecida. E uma autoritária religião patrocinou, com a vitória esmagadora [isso mesmo, a vitória que esmaga], a teologia daquela opção. Trabalhou-se para que a truculência fosse abençoada e o não à truculência, tachado de heresia. E, na sociedade cosmeticamente secular, chamado de insubordinação.


Aquela máxima do Mestre, jamais ousam repeti-la por aí, preferindo-se citar outras. Mas sua desvirtuada interpretação oficial conquistou o mundo para uma só classe, deveras ambiciosa: “Somos todos pecadores, mas Deus é amor e nos perdoa”. Essa fórmula de simplória religiosidade é o cerne da Teologia da Opção. Trata-se de opção, e não de submissão – essa diferença é crucial.


Ao ler, em nobre espaço da Folha, o artigo de Lucia Stumpf e Ricardo L. Ribeiro, pelo que sou informada de que até a Sala dos Estudantes do sagrado (em outro sentido, ou seja, no de intocável) território de São Francisco foi tomado pela PM, ocorreu-me considerar: “PM” – não, não se coaduna simplesmente com “repressão”, mas com “pavor à maturidade”.


Clamar que houve repressão naquele episódio só condiz na boca de uma minoria que – já na aurora dos primeiros dilemas – repudiou o pecado de não saber o que se faz, para desenvolver a consciência. Para todos os demais – a grande maioria –, não há de se falar em repressão no caso do Largo de São Francisco, até porque o que a ação da PM transmite para tal maioria não é, absolutamente, repressão, mas simplesmente “o que tinha de ser feito, não havia outro jeito”.


A polícia, o ditador, o infalível não estão de um lado e as “vítimas” de outro – os primeiros constituem reflexo das últimas. Por isso, afirmei antes que não se trata de submissão, mas de opção.


Não desenvolver a consciência implica precisamente não saber o que se faz; é a opção definitiva por não superar a condição de pecador, que leva por fim ao ostentar a personalidade sadomasoquista descrita por Erich Fromm. Resumidamente, tal personalidade respeita a autoridade irracional porque isso traz redução de angústia. A manifestação desta, observo, sempre acompanha a sensação de incapacidade por falta de desenvolvimento humano.


Foi especialmente nas palavras de John W. Glaser que encontrei, há alguns anos, respaldo para meu insight de que Jesus não veio para ser sacrificado para expiar pecados, mas, com seus ensinamentos e exemplo, eliminar o pecado de vez: “Jesus veio libertar o ser humano de seu superego”, afirma tal autor, que propôs o tão elucidador contraste entre superego e consciência, com base no qual procuro aqui explicitar um pouco as bases do que chamo de Opção (opção pela não consciência ou emperramento no desenvolvimento) e de “sociedade do superego”.

Eis alguns fatores daquele contraste:
(a) o superego produz o tipo de comportamento cuja base é o medo de deixar de ser amado, aceito. Em contraste, a consciência inspira a iniciativa de amar. Esta comparação reforça fortemente o pensamento de Fromm.

(b) O superego está por trás do ciclo culpa-confissão-‘paz’. A consciência leva ao crescimento gradual, abrangendo todos os aspectos que caracterizam um genuíno desenvolvimento da pessoa, o que significa fim à condição de pecador.

(c) O superego resume tudo ao ‘obedecer cegamente à autoridade’; a percepção de valores e o posicionamento em relação a eles não entram em questão. Já a consciência é sensível a valores e reage aos mesmos, quer haja a figura da autoridade ou não. Ou seja, pode-se também dizer “quer haja a religião e sua moral ou não”.


Paulo é clamado fundador da Igreja de Roma justamente por repudiar toda essa tese de possibilidade de vencer o superego e assimilar com sucesso prático os ensinamentos de Jesus que são, dada a afinidade com a consciência, ensinamentos para a liberdade. Dito de outra forma, os ensinamentos de Jesus derrubam a visão de indispensabilidade da lei mosaica, das autoridades em geral, que, claro, inclui a Igreja. Esta se valeu dos pronunciamentos de Jesus para sustentar, sobretudo por conveniência, que a lei mosaica estava extinta. Para precisamente passar a ser ela mesma a lei. Ou seja, Paulo e Jesus estão em pólos diferentes, e a tônica da doutrina original de Paulo não é de fato Jesus e a liberdade conquistada com profunda revisão interior, mas a graça conferida pelo Espírito Santo, que dispensa a observância da lei (judaica, no caso) para a salvação. Sem dúvida, referências a Jesus são colocadas por terceiros na boca, melhor, nas epístolas de Paulo.


Temos, assim, uma visão sucinta, mas preliminarmente suficiente para se entender a origem do pavor nosso pela maturidade, termo que emprego por causa do jogo de palavras com PM (polícia militar), mas que deve ser interpretado – o temo maturidade – como vencer o superego e atingir a consciência. E, de fato, seguir Jesus (pode ser que este último esclarecimento sirva para alguém.)


A luta de Paulo (clamado fundador da Igreja de Roma) consigo mesmo, narrada em sua Carta aos Romanos, é típica de uma pessoa dominada pelo superego:


“... em meu ser mais profundo, tenho prazer na lei de Deus, mas eu vejo que outra lei opera nos membros de meu corpo, batalhando contra a lei de minha mente, e fazendo-me prisioneiro da lei do pecado instaurada em meus membros. Quão miserável sou!”
(Romanos 7,22-24).
Repare que Paulo refere-se à lei de Deus, pois de fato não conhecia os ensinamentos de Jesus, o que fica patente em suas epístolas.


A orientação pelo superego evoca: “As coisas já estão estabelecidas – fazer o quê?” e apregoa: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. A consequência última da orientação pelo superego é ser incompetente para a liberdade. Graças à ampla, majoritária opção pela não-consciência – que a religião da privilegiada, “única” verdade do Cristo consagrou –, restou estabelecida a distorção de conceitos diversos, alguns fundamentais como o de liberdade.


Para o orientado pelo superego, ter liberdade é fazer o que se quiser, incluindo o não ter de dar explicações, e permitindo o “dar um jeito” e o “se sair bem”. Na ampla sociedade do superego, “desenvolver e aplicar talentos” são apenas palavras bonitas em alguns “deslocados” sermões dominicais na Igreja de Roma, e nas cristãs em geral. Na Teologia da Opção, tal equivale a desafiar ou negar o Espírito Santo. E que ninguém sequer pronuncie esta injuriosa palavra: inteligência. O próprio conceito de “ser cristão” é distorcido, tendendo para um exagero que arranha o céu. Sabemos que, ao lado de tal exacerbação, caminham outras denunciadoras distorções, como a de anarquia – que virou “baderna”; a de fé – que virou “crer e obedecer cegamente”. E mesmo amor, que passou também a atributo de Deus, virou “aceitar tudo; perdoar; não confrontar, nem exigir mudança de conduta”. Se esta ocorre, para melhor, é prova da “ação do Espírito Santo” – nada mais, nada menos.


Uma grande empresa nacional anuncia com persistência sua iniciativa em prol do “desenvolvimento integral do ser humano”. Ao mesmo tempo, faz com que todos os funcionários tenham a bolsa ou mochila vistoriada pelo chefe, ao deixar o local de trabalho, no fim do expediente. Não se percebe a brutal contradição. E esta é mesmo outra característica da sociedade do superego: não atentar sequer para as próprias contradições.


Onde não viceja a liberdade, também não há de fato amor; a tônica do ser humano emperrado no desenvolvimento pessoal é o sadismo, que me parece elemento primordial da intolerância, do preconceito. O regime que com ele guarda maior afinidade, nestes tempos pseudo-democráticos, é o autoritarismo disfarçado (ver o ensaio “Que saudade do AI- 5” , de Arnaldo Malheiros Filho, também na Folha).


Nesse contexto, a USP deixa de ser até mesmo dos sujeitos com carteirinha válida. No sábado, 11 deste mês de agosto, a estagiária em serviço na UPD (Unidade de Processamento de Dados) da FEA (Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade) barrou meu acesso, alegando que tinha ordens para não abrir duas das quatro salas. Havia dezoito microcomputadores prontos para uso numa das salas trancadas, e quatorze na outra. Após eu declarar que nem precisaria acender a luz para usar o computador, sem resultado, decidi protestar permanecendo de pé junto ao balcão, diante daquela estagiária. Logo um segurança chegou e mandou-me “sentar lá fora”. Aleguei que lá continuaria, de pé, porque precisava colher dados adicionais para fazer uma reclamação. Pedi o nome completo ao segurança, recebendo, além do nome, a provocação dele: “Endereço, CPF, RG, o que mais você quer?!” Nada mais eu lhe disse. A estagiária, mais tarde, negou que tivesse chamado o segurança: “Foi a faxineira quem chamou. Ela ficou assustada – a senhora ficou aí parada”. Aquele segurança ficou rondando a UPD enquanto eu lá estive. Pouco antes das onze horas, apareceu uma ex-aluna da FEA, que a mim se identificou como Carolina Rogério, pedindo à estagiária um computador “só para fazer uma consulta rápida”. A estagiária indeferiu também aquela solicitação, apesar dos cerca de trinta computadores ociosos. E isso ela não confessou – fingiu que não havia tais computadores: “É preciso senha para acesso” – alegou. “Não há uma senha provisória, algo assim”? – insistiu Carolina. Com jeito pretensamente angelical, a estagiária diz “não”. Os computadores das salas trancadas não exigem senha de acesso.


Sendo eu mestre pela própria FEA, faço hoje o doutorado em história social também na USP. Ainda assim, ouvi da estagiária, após ter ficado duas horas “fazendo pesquisa” diante dela: “Você quer se beneficiar!”, dito com tom acusatório, como se o benefício fosse abusivo. Eu queria trabalhar na minha pesquisa para cumprir o que a sociedade espera que eu cumpra, como favorecida com tal vaga.


Mais uma vez, mostravam-se oportunas as palavras do Mestre. Seria proibido trabalhar na tese, fazer o bem, justamente no sábado? Uso aquelas salas da UPD de segunda a sexta, quando são bem mais requisitadas. No sábado, não tiraria a vez de ninguém, por haver pouca demanda.


No afã capitalista, corta-se espaço entre poltronas nos aviões; poupa-se grooving. No outro pólo, da administração estatal, multiplicam-se as agências de controle, inclusive no setor aeronáutico, em prol especialmente do apadrinhamento. Nega-se o acesso a recursos, sem justificativa plausível. Já se tratou desses temas exaustivamente. Mas não me parece ter sido suficiente a atenção para o fator humano que, com a Opção, com o pavor à maturidade, dá respaldo a todas as conseqüências advindas da preponderância do superego em detrimento à consciência. “Eu recebo ordens; sou mera estagiária”. O sadismo daquele que compactua com o autoritarismo é bem maior do que a própria ambição capitalista que, uma vez ou outra, derruba aviões. Ao unir-se, contudo, sadismo e ambição – justamente o âmago do catolicismo –, não apenas as quedas de aviões se multiplicam, mas a queda sem volta da humanidade torna-se fato histórico, tendo no espuriamente justificado episódio de tomada do “Território Livre” melhor testemunho do que na patente truculência do AI-5.

Nota: O artigo "Que saudade do AI-5", publicado na Folha em 21/8/2007, também pode ser encontrado neste blog, em: 
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Aqui está o texto completo do artigo publicado na Folha, mencionado no topo desta postagem:

Em defesa da educação pública e da verdade


Lúcia Stumpf e Ricardo Ribeiro

A Faculdade de Direito da USP, ao longo da história, se consagrou como um porto seguro,
 o que lhe garantiu a alcunha de "Território Livre"


EM ARTIGO publicado neste espaço no último domingo, o diretor da Faculdade de Direito da USP, João Grandino Rodas, procura justificar suas atitudes em relação ao ocorrido entre os dias 22 e 24 deste mês. Primeiro, a ocupação simbólica da instituição pelos movimentos sociais. Depois, a truculenta desocupação pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Por fim, o fechamento da faculdade por dois dias, com suspensão das aulas.

O desembargador evoca o Estado democrático de Direito, os bons índices acadêmicos e de pesquisa da universidade pública brasileira e dispara: "É aceitável que grupos alheios à universidade a usem como palco privilegiado de suas reivindicações, por mais justas que possam ser?".

Nossa resposta: o objetivo, ao adentrar simbolicamente as centenárias arcadas, foi provocar a reflexão sobre os graves problemas que afetam a educação em nosso país e dizer que queremos, sim, cada vez mais, ver pobres, negros e sem-terra, "os alheios", ocupando as carteiras das universidades brasileiras.

Ao longo dos anos, o sistema público de ensino inverteu a sua lógica de ser instrumento de inclusão, promoção social e desenvolvimento nacional. Sofreu intenso processo de desmonte e se transformou em mais um mecanismo de exclusão e marginalização de alguns setores da sociedade.

Sem contar que a faculdade de direito, ao longo da história, se consagrou como guarida, porto seguro, o que lhe garantiu a alcunha de "Território Livre" para todos que enfrentavam anos difíceis nas ruas do país. Podemos lembrar a resistência ao Estado Novo e à ditadura militar, a greve dos metalúrgicos em 1978, as campanhas pela anistia e as Diretas-Já.

A ocupação não desacreditava ou solapava a instituição, como sugere o diretor. Sem a dramatização que carrega o seu texto, o protesto contava, sim, com elementos ligados à universidade: estudantes da USP e de outras instituições organizados pela UNE (União Nacional dos Estudantes).

O diretor soube desse fato desde o princípio, pois enviou o professor Nestor Duarte para representar a diretoria e conversar com os manifestantes. Além disso, foi informada a presença do Centro Acadêmico XI de Agosto, que, apesar de não ter participado do ato, queria garantir que a ocupação ocorresse pacificamente.

A manifestação era simbólica e integrava a Jornada de Lutas em Defesa da Educação, série de protestos que mobilizaram mais de 100 mil pessoas em diversas cidades e que promoveram outras ocupações de caráter pacífico e sem incidentes com a polícia.

Símbolo desse sistema excludente, a Faculdade de Direito da USP deveria ficar ocupada por um prazo determinado e amplamente divulgado de menos de 24 horas. O músico Tom Zé esteve presente ao ato, realizou show improvisado e declarou apoio à ocupação. A proposta, desde o início, era realizar até as 15h do dia seguinte outras atividades culturais, debates e grupos de discussão.

Em nenhum momento houve intenção de esbulho possessório, já que por esta prática se entende o "ato de despojar o possuidor da sua posse injustamente, ou seja, de forma clandestina, violenta ou por abuso de confiança". Não se configurou -e isso quem fala são representantes que estavam dentro da ocupação até as 2h, quando a Tropa de Choque chegou batendo os cacetetes em seus escudos- nada que justifique a acusação.

Não foi um ato clandestino. Não houve violência. A entrada e a saída do prédio não foram impedidas. As aulas não foram interrompidas e ocorreriam normalmente no dia seguinte. Não abusamos da confiança do diretor -muito pelo contrário, ele é que o fez, enviando representantes para negociar enquanto solicitava a intervenção da PM.

A entrada do choque no "sagrado solo de são Francisco", em especial na Sala dos Estudantes, mancha a história da instituição, pois a fere em sua conceituação de território livre, algo tão caro para várias gerações. Reforça ainda a visão dominante de que a universidade pública é feita somente para os que conseguem ter acesso a ela.

No caso da USP, em particular no curso de direito, ingressam, na maioria, filhos de uma elite nacional sustentados, como lembra o sr. Rodas ao final de seu artigo, "pelos impostos de todos os paulistas". Uma parcela representativa desses contribuintes, inconformados com a atual situação, estava se manifestando na universidade. Como nos anos de chumbo, saíram de lá no camburão da polícia.


LÚCIA STUMPF , 25, estudante de jornalismo da FMU, é presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).
RICARDO LEITE RIBEIRO , 22, estudante da Faculdade de Direito da USP, é presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto.
(obtido de http://webmail.andes.org.br/modules/smartsection/item.php?itemid=176)

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