Monday, April 27, 2009

Morre um grande executivo - o anúncio religioso e reflexões inspiradas

Ontem, algo muito positivo aconteceu na minha igreja, ao término da missa das 19h: o vigário topou mencionar, de última hora, o falecimento de um senhor “importante, mas simples”.

Tal anúncio, que poderia não ter se dado, caso "o sacerdote fosse chato", aproximou a obsessão pela certeza, o imperturbável, o imperioso mas frívolo, do imprevísivel, do humano, do importante mas simples.

O que a truculência usual teria cepado acabou como uma realização para um dos lados, e uma irritante concessão para o outro. E um lado não enxerga o outro. Sou eu quem, ao enxergar ambos, é capaz de produzir a síntese do "algo muito positivo".

Uma nora deixou “todo o mundo lá”, para pedir a menção não planejada - e como o seria? - na missa. Se isso não é sinal de grande, espontânea religiosidade, com quem estaria a cegueira?

Ela chegou à igreja quinze minutos antes do horário máximo para encerramento da última missa! Comovida, entrecortando sua fala, a nora pedia, “simplesmente”, o impossível a mim, que a acolhera com toda a simpatia, como faço com todos que lá aparecem, em horas assim tão aflitivas, e quando sequer há uma secretária disponível.

Se ainda estivéssemos sob a liderança do vigário anterior, aquela nora não teria nenhuma, nenhuma chance. Ele é a inflexibilidade em pessoa, inclusive em relação a tais pedidos diretos, sem o prévio tratamento pela secretária (em missas tão importantes, como aquela de domingo, isso envolve pagar pelo comunicado, pedido pela alma, o que você preferir como denominação).

Certo dia, vi uma senhora sair da igreja afrontada, afirmando que nunca mais voltaria, porque tal vigário se recusou taxativamente a “lembrar”, na missa, o aniversário de falecimento de seu esposo, mesmo tendo ela se comprometido a “pagar no dia seguinte”, já que, naquele momento (era também domingo), a secretaria estava fechada. Repito, o vigário foi firme e ríspido na negativa, e a solicitante chegara antes do início da missa, não durante. Ainda, no sermão da missa que rezaria em seguida, afirmou: "Quem vai embora é porque jamais teve fé. E não perdemos nada com isso, mas ganhamos em qualidade”.

Tempos abertamente duros. Hoje os tempos são de uma dureza “desafiável”, mas ceder ainda contraria os "executivos" da minha igreja.

Olhei para o relógio da sala de espera, onde eu escrevia. O local sempre me inspirou. Sorridente, interrompera a escrita e cumprimentara a visivelmente aturdida nora.

19h45m. Teria de ser rápida, para conseguir ver o pedido dela satisfeito. Senão, nem daria tempo – a missa terminaria em poucos minutos. Com muito tato, cheguei a dizer-lhe que “seria bem difícil”. Então, envolvi o secretário do novo vigário, que estava logo ao lado, uma novidade. (Mas ele não marca missas; tem outras incumbências, relativas ao altar, etc.)

“Será que não daria...”? O secretário, pondo-se prontamente de pé, mostra-se solícito, como de costume. A nora me olha rapida e desconsoladamente, antes de recomeçar sua história. Eu interrompo, para poupar-lhe da repetição e, também, por não haver tempo, e disparo para o secretário: “Ela só deseja comunicar, na missa, o falecimento do sogro, só comunicar”. O secretário diz que não dá. Que o mais importante é a missa de sétimo dia. A nora diz que vai mandar rezar todas as missas. Mas o secretário se prendia à burocracia.

Eu interfiro, com jeito: “Olha, acho que dá, sim. Vá pela lateral, dê um jeito de passar isso para o padre (o vigário que rezava a missa)". O secretário atende e vai rapidamente em direção à sacristia. “Espere. Anote o nome”! Como eu escrevia, tinha papel e caneta à mão. "E também a hora" [do falecimento], eu comando ao secretário.

E lá foi ele. Mostro, então, o local da secretaria para a nora e é neste momento que ela me diz que seu sogro era “uma pessoa simples”. Emenda: “Sim, importante, muito importante; mas simples”. Então, o secretário, de volta, nos interrompe: “Quem é você”? “A nora”. Eu interfiro novamente: “Diga que é a família quem anuncia”. O secretário volta para a sacristia depois de declarar: "Ainda vou ver se vai dar". "Você já falou com alguém"? (ou apenas deixou o papel lá?) "Já falei, mas não garanto".

Então, vem o ministro, vozeirão, com o papel - com o nome e a hora - na mão. Pede confirmação das informações e retorna rápido.

A nora, agora esperançosa, se dirige para a parte frontal da igreja, onde a missa trancorria, mas para e pergunta meu nome. Fica surpresa e encantada quando lhe digo que eu era uma simples paroquiana e não empregada da igreja. “Você está aqui durante a semana”? “Não... Mas aos domingos à tarde, sim”. “Muito obrigada. Porque sei que ele [o sogro dela] está aqui. Que a pessoa vai passando pelos lugares, se despedindo”.

Pouco depois, ouvi, daquela sala, o anúncio ser feito. Um sentimento muito bom me fez levantar e procurar aquela nora. Lá estava ela, de pé, na ala lateral próxima à sala de espera, ainda mais comovida, agora ao lado de uma bonita adolescente – sim, sua filha, eu logo descobriria; ou seja, uma das netas de quem partira; e ela também não conseguia conter as lágrimas.

O vigário foi generoso, fez a alusão de praxe à ressurreição, citou o nome duas vezes. Testemunhar aquele sentimento delas me fez suavemente abraçar a nora, ao meu lado e notar empaticamente a neta.

Aldo Sani, de profissão, foi principalmente um alto executivo. Já estava aposentado há vários anos, mas permanecia ativo, exercendo outras funções de gestão. E talvez também tenha apreciado ver então, em ação, um dom executivo, o meu, ao tratar o pedido de sua nora com a devida leitura dele, a devida agilidade e precisão, e até acompanhar de perto sua execução.

Além do nome e que era "uma pessoa simples", nada sabia eu sobre o sogro que partira (ou que partia). Pesquisei depois, na internet.

Quando o vigário, finda a missa, entrou na sacristia, lá estava eu, procurando repassar-lhe a gratidão das lutuosas pessoas que acolhêramos: "Conquistamos uma paroquiana; ela ficou superagradecida". Ele me respondeu rispidamente: “O bom foi que já rezamos por ele”.

Isso, sim, tem muito a ver com minha igreja (católica). Todos os padres – ou praticamente todos – são muito bitolados, não têm simpatia, nem empatia. São avessos e ansiosos em relação ao sofrimento de modo geral (afinal, se escondem naquela "vocação"). São mais burocráticos do que o mais burocrático funcionário civil. E, diante disso, o espiritual só pode ir mal. Ainda assim, acham, de verdade, que a qualidade “aumenta”, especialmente se a igreja está lotada.

Gente, tirando aquela neta, quantos daquela idade havia lá? Zero, ou algo bem próximo disso. Quem vai lotar a igreja amanhã?

A igreja católica não assinala o dia da morte em missa. Não sei se é apenas para não pegar ninguém (os burocratas sacerdotes) de última hora, se para não estressar a secretária (eu, repito, não sou secretária, mas paroquiana que, voluntariamente, faz papel de secretária, zeladora, faxineira, babá, o que for preciso, de última hora, ali, na igreja, no dia mais santo da semana, sempre que posso estar presente).

Por tudo isso, aquela menção na missa de ontem, dia mesmo da partida (às 15h) de Aldo, foi mesmo um marco. Um lindo marco.

Ele merecia. Entretanto, os sensíveis às coisas espirituais sabem que, tradições à parte, quem precisa muito mais de tais menções e lembranças são os vivos que enfrentam a perda. São estes que precisam mesmo do funeral, todo o seu desenrolar e desenlace. E o pós-funeral. Os aniversários de morte. Viver é que precisa de executivos tarimbados, não morrer – o brilhante Aldo deve concordar comigo, enquanto ainda transita entre nós, "se despedindo", como afirmou sua nora.

Fui tomada de uma sensação muito boa, apesar de se tratar de tão grande perda. Tal momento cristalino, único, que eu permiti que acontecesse “against all odds” (contra todas as expectativas e regras), equivale a salvar vidas, em meio à morte. E é para isso que estamos aqui no mundo – para zelar pela vida, apesar, e diante, da morte.

A doce nora e neta terão aquele momento intenso para se lembrar, fazendo-as se sentirem vivas, apesar de tanta dor.

Panos Quentes diante da morte? Grande falta de espiritualidade. Precisamos encará-la com o senso de um tarimbado alto executivo, que também está – sempre – atento para as emoções e fraquezas, o que ele coloca acima, bem acima, da burocracia, ao mesmo tempo que a conhece e a leva em conta ao decidir como agir; pondera até que ponto quebrar a burocracia não é mais do que “pouca bobagem” e quando de fato não temos margem nenhuma para agir, para criar momentos inesquecíveis, para valorizar a vida, até mesmo lidando eficientemente com a morte.

Para a família de Sani, ainda tenho a declarar que o momento de ontem tornou-se inesquecível para mim também e, provavelmente, irá me ajudar diante de outros desafios que, certamente, encontrarei e enfrentarei sem tempo de sobra, sem recursos de sobra, mas tendo, de sobra, um tesouro que de fato importa mais.

Acho que, agora, tenho um titulo para este escrito:
26 de abril de 2009 – dia em que Aldo Sani nos propôs um último e contundente desafio, de como lidar, com tarimba, com a vida.

Que, um dia, minha igreja descubra que a resposta a tal desafio não são os dogmas, as catequeses, os sacramentos. Tampouco o é o “reinar não importa como”.

Meu vigário, ao responder ao meu agradecimento a ele, estava preso na inércia de uma instituição que o fez perder, em muito, o senso de espiritualidade e de eternidade de um executivo tarimbado.

“Bom foi que já rezamos por ele”. Com o foco na morte e suas implicações, segundo inflexivelmente impostas, de forma massacrante, por nossa igreja, nosso vigário ignorou o patente: a igreja só existe para os vivos.

E para os vivos, a vida continua. A vida de quem parte, em especial.

Mariangela Pedro
27 de abril de 2009

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