As imagens não me deixam. É como se eu estivesse dentro do filme. Esse não é outro que o resultado da performance de uma grande atriz de fato.
A partir dessas imagens, lembro que Hanna não o chama de Michael, mas de 'kid' - garoto - todo o tempo. Isso para deixar bem claro, principalmente para ela mesma, que ela tinha idade para ser a mãe dele. Trinta anos mais tarde, o homem que ela amara tinha 'crescido'. E ela envelhecera - e demais; aparentava oitenta e não sessenta e seis.
Desde que fora promovida no emprego, ainda naquele verão inesquecível que vivera com Michael, seu 'kid', Hanna só o vira uma vez: durante a época do julgamento que resultaria em sua prisão por duas décadas. Ele estudava direito em Heidelberg; ela era uma das acusadas de ter deixado - enquanto na função de guarda - dezenas de judias serem queimadas, trancadas em uma igreja que subitamente se incendiou por causa de um raio.
Esse inusitado episódio, antes fadado ao esquecimento geral, viera à tona com o livro escrito pela única sobrevivente judia.
As outras acusadas - igualmente guardas como Hanna - são condenadas a apenas quatro anos e meio de detenção. Ela, porém, no decurso do processo, tornou-se vítima de uma súbita campanha que espuriamente a apontou como "a líder" das guardas, e a que teria elaborado um relatório mentiroso sobre os eventos. Tão-somente para não admitir que era analfabeta (e, portanto, jamais poderia ter elaborado o relatório manuscrito que era apresentado como evidência contra ela), Hanna acaba dando falso testemunho de que ela é a autora do documento. Seu 'kid', que acompanhava o julgamento como estudante de direito, então recorda-se de instantes do passado, sendo, então, o único a constatar o maior engodo naquele julgamento.
Embora seu professor reitere o dever de ele revelar a verdade no tribunal, Michael se calaria, diante da decisão da própria Hanna de esconder seu analfabetismo. Mais. Michael, enquanto ainda aparentemente atormentado pelo dilema, requisita uma visita à Hanna, encarcerada à espera da conclusão do julgamento. Vai até o local, mas não honra a visita. É aí que Hanna o revê por segundos: Michael deixa o prédio sorrateiro, imitando a própria Hanna que, anos antes, partira para sua promoção sem se despedir de Michael, que talvez estivesse, assim, movido, em seu calote, mais por ressentimentos em relação ao passado do que por questões éticas do presente.
É essa covardia de Michael o que a maioria assimila do filme - na saída da sala de projeção, os comentários são condenáveis a Micheal, por ter permitido uma mentira com um preço muito alto - Hanna é condenada à prisão perpétua.
Acaba conseguindo sair antes. Hanna e Michael finalmente se encontram novamente, trinta anos mais tarde, em decorrência da intervenção da unidade penitenciária (o único contato de Hanna era Michael e ela precisava de ajuda para sobreviver fora da prisão, após vinte anos reclusa).
Contato? Que tipo de contato?
Nos últimos tempos, Michael, passando ele mesmo por um período de grande mudança, olha para o passado e tem a idéia de gravar fitas com sua leitura de obras literárias e enviá-las à penitenciária. Quando eram amantes, Michael lia para Hanna todos os dias, antes ou depois de fazerem amor.
Hanna, por fim, com a grande quantidade de fitas que recebe, tem a motivação de aprender a ler e escrever por si. Surpreso, Michael passa a receber bilhetes dela. Mas jamais os responde.
Para o espectator, fica claro que Michal não quer mais viver a intimidade com Hanna. Talvez por sentir culpa pela sua omissão no tribunal. Talvez por ter 'crescido' e perdido a inocência. Aos quinze, Michael expressou suas emoções. Chorou, declarou seu amor. 'Crescer' torna tudo isso irrealizável. Michael admite à filha - "Me fechei, não fui capaz de me abrir com ninguém" - isso 'esquecendo' o quanto se abrira para a primeira mulher de sua vida, Hanna precisamente.
E é isso, a constatação por Hanna de que aquela intimidade parecia acabada, que a leva ao suicídio. Claro, intimidade não é sexo. Não apenas isso. E, naquele reencontro, não era sexo a questão, de modo algum. Hanna, deixando o sorriso escapar incólume às rugas que desafiam sua beleza, declara a Michael que ainda prefere que alguém leia para ela. Michael, não tão enrugado mas muito mais irreconhecível em relação ao menino-amante, capaz de fato de amar, não se mostra disposto a reassumir seu papel de 'leitor' de forma direta. Ao menos, é essa a impressão desastrosa que ele oferece à Hanna, naquele reencontro.
Não tendo mais ninguém no mundo, Hanna passara a amar os livros. Sequer conseguiu se despedir de Michael - quer no auge do romance deles; quer naquele reencontro, diante do esfacelamento da relação.
Michael fica de buscá-la na semana seguinte. Para que? - Hanna secretamente se perguntou, não tenho dúvida. Ela, em seu cubículo, amontoa alguns livros sobre a mesa. Aprendera a ler, mas não o fizera para não ter mais quem lesse para ela. Sobe sobre tais livros. E o que se segue é previsível, embora não mostrado.
Michael só fica sabendo do suicídio na semana seguinte, quando vai à penitenciária pegar Hanna.
Hanna, analfabeta, é de uma sensibilidade incomum; de uma sabedoria igualmente rara.
"Os mortos continuam mortos". Passar tantos anos reclusa não mudava nada em relação ao ocorrido.
Mas sempre precisamos de bodes expiatórios. Hanna destaca-se como um deles.
Quase certamente ninguém no cinema se perguntou por que Hanna, justamente ela, tinha sido apontada como a grande responsável. Hanna era, entre as acusadas, a mais bonita. Isso sempre atrai a mediocridade e o ódio. (Eu que o diga!)
Além da beleza, Hanna desafia o juiz, durante uma das sessões do julgamento: "Diga-me: você não faria o mesmo"? O juiz amarga um terrível embaraço. E, por isso, se sente mais intrépido para, logo, anunciar a condenação 'especial' de Hanna.
Como lucidamente propõe um dos colegas de Michael, num dos seminários do curso de direito: Por que acusar justamente elas? Nossos pais sabiam do genocídio; nossos professores!
É. Nossa grande hipocrisia. Já li um incrível artigo acadêmico (em inglês) sobre a sociologia da heresia. Como o herege atuou - e atua - como forte fator de coesão social, em prol de uma religião com estranhas verdades que, não fosse tal propulsor de coesão, não teria a penetração que teve.
Hanna, para o circo social, torna-se a bela nazista. Como se fosse a única? Não. Não apenas isso. Como se fosse nazista - sequer poderia ser chamada assim, mas o é.
Mas Hanna não se abala por isso. Sua tragédia é dominar os livros, para perder a intimidade com seu leitor, seu kid que 'crescera'. Não, isso ela não podia suportar. Ironicamente, usa livros para apoiar seu salto para a morte.
Hanna é rara. Verdadeira em seus desejos, sua solidão. Sobretudo, Hanna é incomum na intimidade consigo e na intimidade que estabelece com o amado. Hanna é apaixonada e apaixonante por seu viver. Por seu desdém ao planejamento: "Deixe-me mostrar-lhe para onde estamos indo'. "Não quero saber", ela responde.
Sim, o fato de ser analfabeta pode explicar em parte o tal descaso com os planos. Mas não explica grande parte do descaso. Hanna me lembrou que a vida que merece ser vivida é simples, conhecedora da alma, pura no reconhecimento do papel que acabamos desempenhando, graças à própria sociedade que, quando convém, condena tal papel, como se nós tivéssemos tido escolha.
Hanna escolhe não mais viver - não haveria mais um ritual de amor, de sensualidade, de intimidade para ser aquele viver, que ela deve ter almejado um dia recuperar, durante os vinte anos na prisão.
Não é por mero acaso que me identifiquei tanto com Hanna, que continuou a viver em mim, após o término do filme.
Aponto um porém, por lembrar um detalhe: numa linda cena, Michael está escrevendo ao sol, enquanto Hanna se banha no rio, e esbanja sensualidade ao mostrar o sutiã encharcado, colado ao corpo. "Ainda não está pronto". "Quando [o poema sobre você] ficar pronto, leio para você".
Falha no script? Não se fala mais do poema.
Jamais ficaria pronto. Ou acabou esquecido. Se Michael tivesse lido aquele poema... Perdeu uma grande oportunidade de fazê-lo, especialmente ao ter revisto Hanna, depois de tanto tempo.
Quisera poder alterar aquele reencontro deles, no refeitório da prisão. Michael então leria o poema para ela. E... Isso teria salvo o relacionamento deles; teria salvo a vida de Hanna. E, de outro modo, teria também salvo a vida de Michael, inefavelmente apartado de sua inocência.
Mariangela
Filme: The Reader - O leitor.
P.S. Este texto é também uma resposta ao absurdo comentário que me foi feito outro dia: "Como você pode dizer algo sobre ela, se a vê tão pouco"? Completa ignorância emocional.
Nesse aspecto, The reader serve como uma ilustração, apenas mais uma, de como nossas vidas são determinadas por certos encontros, por relacionamentos que "duram" apenas dias ou semanas. Do quanto nos revelamos em tais momentos raros em todos os sentidos. E como são tais relacionamentos que importam, e não os de, aparentemente, "vida inteira". Mas é, no mínimo, doloroso constatar o quanto muitos são impermeáveis à... vida, embora nada tenham de analfabetos, e até leiam "grandes filósofos".
Mariangela
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Monday, February 9, 2009
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'-ERS' FELLOWS: LOVERS OF IDEAS; EXPLORERS OF THE SUBLE; THINKERS AND WRITERS OF INEXHAUSTIBLE PASSION. ULTIMATELY MINDERS OF FREEDOM.
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