A tradução do soneto de Wilfred Owen alusivo à Primeira Grande Guerra que saiu, recentemente, na Folha de S.Paulo é ruim. Apresentamos - em outra postagem - nossa tradução, inédita, juntando o original e a tradução de Nelson Ascher - para o leitor comparar, aprender e se deliciar. A seguir, fazemos uma discussão da interpretação do soneto.
Elogiável a publicação do soneto de Wilfred Owen no caderno Ilustríssima de domingo passado (20.07), enriquecendo o conteúdo principal, sobre a IGG (Primeira Grande Guerra).
Incluir tradução para nossa língua também merece aplausos. Contudo, a tradução em si foi decepcionante.
Essa péssima tradução nos serve de base para duas postagens. Nesta, discutimos a interpretação geral do soneto. Na outra, demonstramos em detalhes - contém "10 tópicos cruciais" - como o que foi publicado na Folha não se sustenta como uma tradução razoável - menos ainda como ilustríssima. Ali apresentamos nossa tradução, a tradução da Ilustríssima e o original de Owen para comparação e aprendizado.
A interpretação geral
Diante do soneto de Owen, há interpretações difíceis a fazer. 'Artillery' pode se referir às armas ou aos soldados.
Há uma 'Great Gun', que pode ser confundida com o 'black arm'. Mas, justamente nesse 'possível descaminho' está grande parte da engenhosidade dos versos, o que, contudo, é percebido, por muitos, como obstáculo ao entendimento.
Ao interpretar que a artilharia é uma arma em uso do lado do combate em que o autor está, o tradutor da Folha impõe
várias outras perdas ao texto original, que procura disfarçar
com um vocabulário assustador como a Grande Arma.
Além disso, ele simplesmente some com significados e, novamente, decide colocar um termo assustador no lugar: 'empáfia' aparece quando 'Reach at that Arrogance' (termos simples no inglês) s-o-m-e.
Na escolha de palavras difíceis, o tradutor feriu o soneto de morte, e a audiência boiou - não deu para entender. 'Troante esconjuro' para traduzir 'huge imprecations' termos simples em inglês, ilustra cabalmente esse meu ponto, que encontra repetidamente respaldo ao longo de toda a tradução.
Ainda que um 'thou' logo na primeira linha remeta para a forma antiga do inglês, concluir precipitadamente que os versos são arcaicos e indecifráveis - até para a maioria dos leitores daquele caderno cult - é um equívoco. Outras formas arcaicas, variantes da anterior, surgem: thy, thee. De novo, não é isso que deve embotar a assimilação do soneto que - em tudo o mais - apresenta termos simples.
De outro ângulo, não é tão enganosa complexidade que deve levar o leitor a se conformar com uma tradução ruim como a que foi publicada.
E o cerne do péssimo resultado a que chega aquele tradutor é falhar totalmente na interpretação do soneto.
A crítica ao soneto encontrada no site The Wilfred Owen Association também adota a interpretação da superfície do inglês mais elementar mas, por fim, acaba reconhecendo sua perplexidade diante do resultado e indaga: 'But there's one thing wrong. It does not sound like Owen, does it?' [Mas há algo errado. O soneto não soa como de Owen, soa?]
Entretanto, fica nisso; não consegue fazer disso uma grande pista de que o soneto resta totalmente desperdiçado sob aquela interpretação com base em tradução 'tranquila' - o que, por si só, já deveria ter levado à suspeição (a um "desconfiômetro" em ação). Afinal, por que um poeta que se consagrou dedicaria tanto esforço, revisão, etc., para acabar com uma coisa tão... estranha?
O que toca o autor não é a ação da Grande Arma, mas o que esta faz com o 'pelotão no escuro', parte da Artilharia (soldados). O pelotão é, a certa altura, dizimado; mais precisamente, o pelotão é abatido no verso em que se lê "beat it down".
O autor (poeta), que faz parte da Artilharia, vê, portanto, seus companheiros massacrados pela Grande Arma, que
não é apenas um artefato, mas, de forma ampla, o Inimigo. Seu sentimento pela dizimação aparece em 'spend our resentment'. Se não é ao abatimento do pelotão que esse ressentimento se refere, ao que é então? A tradução da Folha troca 'resentment' por... ódio.
A partir disso, fica particularmente evidente que o tradutor foi torcendo o soneto para acabar com uma 'certa coisa' que seu domínio limitado de inglês havia sugerido. Não seria a tradução o desdobrar ao máximo o soneto até acabar com algo livre de distorções - ao menos as intencionais, ditadas pela preguiça, falta de fôlego ou incapacidade -, no melhor português compatível com a complexidade do vocabulário no original?
O autor, a obra, o contundente background, bem como os fartamente castigados leitores de português merecem o 'esconjuro' só se vier no devido modo, tempo e lugar.
O tradutor, está evidente, se esforçou para compor rimas, mas estas não podem ser imperiosas a ponto de justificar o sério abalo da obra original em suas demais características. A simplicidade e tom amplamente tocante do soneto de Owen acabaram seriamente prejudicados. Antes disso, o próprio sentido geral do soneto havia sido perdido.
As adaptações que o tradutor empreende só podem ser aceitáveis se o resultado for belo como o original, a tradução refletindo aquele no impacto, sentimento, alcance. E, fundamentalmente, em um sentido coeso.
Ao tomar o choque do 'bulhufas' como simples leitora, eu não parti de pronto para elaborar a análise crítica, mas busquei outra tradução - retraduzi o soneto. A interpretação diferente que eu adoto produz, já no título, diferenças em relação à tradução publicada no Ilustríssima.
Leia minha tradução, o soneto original, a tradução de Nelson Ascher e mais sobre os desafios dessa tradução AQUI.
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Wednesday, July 23, 2014
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