Cada vez mais se ouve que "se dá pra entender, tá bom". Além do descaso com o primor, o que me aturde, a partir dessa afirmação, é a dúvida: será que foi 'entendido' mesmo?
Ando pesquisando a compreensão de textos. Melhor seria grafar 'a incompreensão' de textos - ninguém entende um texto simples, publicado no jornal de rua "Destaque". Todos os pesquisados que demonstraram, de fato, incapacidade de ler afirmaram ter segundo grau completo, estando, eu mesma constatei, empregados em estabelecimentos que exigem aquele nível de escolaridade, mesmo para funções como repositor (supre as prateleiras de produtos) ou atendente de balcão.
Por respeito elementar à lógica, quem não entende sequer um texto simples não pode avaliar se "dá pra entender" ou não certa mensagem escrita. Mas há a lógica do psicológico humano, que pode conduzir para uma outra avaliação desse fenômeno. Com base nesse fator, tenho observado impaciência, incapacidade de concentração, evasão da posição de leitor ("não tenho tempo", "diz logo" [o que o texto está de fato afirmando]). Então, o "dá pra entender", muito provavelmente, consiste em mais uma forma de fuga ao texto, desta vez introduzindo uma falsidade: não há entendimento algum.
Temerário é que, mesmo sem entendimento, despontam as 'conclusões', que não passam de meras adivinhações. Contudo, minha psicologia do leitor detecta que este não admite que apenas adivinha e, quanto menos entende, mais convicção esse leitor 'pirata' impõe ao seu discurso sobre o texto. O infrator dos mares da palavra escrita constrói, para negar também de si mesmo que não entende o texto, uma certeza sobre o conteúdo da mensagem. No fundo, é provável que se sinta alijado, ou traído; também são comuns, como alternativa às "certezas", as críticas de que o texto é que é um malfeitor que, intencionalmente, esconde o significado da mensagem de quem se diz 'leitor'.
Tendo verificado que um texto simples de jornal de rua não é entendido pelo próprio público a que ele está dirigido, voltei-me para mais questões: (1) o que o redator de tais textos 'jornalísticos' acha que está escrevendo? - ele também pensa que "se dá pra entender, tá bom"?; (2) será que, no fim da linha, mediocridade de um lado empatará com mediocridade do outro, e esse 'entendimento' recíproco e cego passará a ser a verdade?
Hoje há uma manchete - sobre a greve dos bancários - que tomo como material muito rico, permitindo que esta minha pesquisa seja replicada por todo aquele que se diz preocupado em escrever e em ler 'bem', alguns audaciosos o bastante para publicarem 'manuais de redação' - a isso eu não me atrevo; não nesse contexto de veementes "se dá pra entender, tá bom". Afinal, diante de tal ditame, para que um manual?
Vamos à manchete; manchete? Talvez deva afirmar que se trata de uma 'tuitada' fora do twitter - uma 'notíca' em mídia-telão; deu pra entender? Falo desses telões que até o Pão de Açúcar acabou de instalar em, até onde constatei, pelo menos algumas de suas lojas. As imagens ali se sucedem, com breves legendas-notícias. No mall do Itaim Bibi (São Paulo), li num dos telões: "Bancários decidirão hoje se acabam com a greve".
O quê?, me perguntei. Minha perplexidade nada tem a ver com o movimento grevista; mas com o texto, seu significado.
Você, meu leitor, muito provavelmente não viu motivo algum para essa minha estranheza, e... entendeu a notícia. E pensou: se entendi, tá bom.
Nos tempos mais honestos de minha infância, uma ameaça comum era: "Vou acabar com sua raça". Mais honestos, claro, porque não reduziam o ódio para um hipocrisante 'politicamente correto'. Homicídio é pouco; ameaça era de genocídio - e declarada com todas as letras, em alto e bom tom.
Mas o ponto principal é o 'acabar com', que também aparece na tal ameaça - notou? O 'com' depois de acabar faz toda a diferença... que você, se 'leitor' de hoje, não percebe. Vou convencê-lo dessa diferença, pra já:
Ele acabou e arrotou.
Ele acabou de arrotar.
Ele acabou arrotando.
Ele acabou com o arroto - apertou o nariz por 30 segundos.
Acabou, agora deve estar claro, pode revestir-se de vários significados - esta é a beleza de uma língua sobre a qual... temos controle. Mas a língua, mesmo a nossa, que pena, hoje foge ao nosso controle. E, sim, justamente o 'acabar com a greve' é prova dessa falta de controle.
E também o jornal Metro, de rua, de hoje, imprime: "Os bancários decidem hoje... se acabam com a greve".
Alguém quer 'acabar com' algo indesejável, e essa expressão embute uma decisão firme, impõe uma ênfase que o simples 'acabar' não tem. Compare: "Ele acabou a tarefa bem na hora"; "Ele acabou com a tarefa"... A segunda expressa outra coisa.
Portanto, quem entendeu o quê, ao ler a notícia? Os banqueiros, se ainda entendem de fato o português, deram risada. Caso contrário, "concluíram": "Ora, os bancários não estão querendo mesmo manter a greve; não veem a hora de que ela termine... Só há a greve por causa do sindicato".
Imagine o amanhã. E que a decisão foi pelo fim da greve. A manchete provável: "Acabou a greve dos bancários". Ninguém haverá, penso eu, de grafar: "Acabaram com a greve dos bancários". Pois. Isso soa a violência, em terras ditas tão... democráticas. Deu pra entender a diferença? A diferença que apenas um 'com' faz?
A Folha de S.Paulo, autora de manual de redação, foi sagaz o bastante para não ecoar o erro. Em "as últimas que você não leu", em seu site, está grafado, quinto lugar na lista das "últimas": "Bancários fazem assembleias hoje para avaliar fim da greve".
Deu pra entender? Ora, já não demonstrei que essa pergunta não é boa? A boa é: o que você entendeu?
Eu entendo que já houve o fim da greve e eles vão avaliar isso. E é isso mesmo o que essa "última" diz. Temos, portanto, mais um fora.
Como eu daria a notícia? O que há de errado com o verbo cessar? Redigir que bancários talvez parem de parar parece piada. Mas um 'cessar' a greve é bom, bonito, barato.
Notei que a palavra 'paralisação', rainha em todas as notícias sobre o assunto nos anos anteriores, este ano sumiu. 'Greve' soa mais forte numa 'democracia', que se esforça, pra caramba, para parecer uma democracia. Mas, que pena, o 'acabar com' a greve jogou uma tremenda cachoeira sobre a altiva greve. Os banqueiros, por certo, querem acabar com a greve. Mas os bancários, se querem acabar com ela, algo vai mal.
Certo é, há este mal: somos 'entendidos' arrogantes, medidos a avaliar um 'bom' texto, enquanto fadados a não nos entendermos mais: perdemos o controle sobre nossa língua.
Mariangela Pedro 17 de outubro de 2011
Avaliação deste texto. Por favor, escolha uma das alternativas:
a) Você acabou de ler este texto, com satisfação, achando que ele 'dá pra entender'.
b) Você acabou a leitura deste texto, que considera um excelente artigo.
c) Você acabou com a leitura, e não entendeu nada.
d) Você espera que acabem de vez com o português e adotem o 'entendês' - e digital, de preferência.
Grata por sua valiosíssima contribuição.
Publique-se
Much of the discourse all around is power-oriented. Our texts, rather, will be appreciated by those brave enough to leave the good life of obedience in order to grow and take risks for the benefit of a multitude of others. Welcome! PORTUGUÊS acesse "apresentação do blog" abaixo
Monday, October 17, 2011
SEARCH BOX ~ BUSCA
THIS PAGE IS DESIGNED FOR A TINY GROUP OF
'-ERS' FELLOWS: LOVERS OF IDEAS; EXPLORERS OF THE SUBLE; THINKERS AND WRITERS OF INEXHAUSTIBLE PASSION. ULTIMATELY MINDERS OF FREEDOM.
'-ERS' FELLOWS: LOVERS OF IDEAS; EXPLORERS OF THE SUBLE; THINKERS AND WRITERS OF INEXHAUSTIBLE PASSION. ULTIMATELY MINDERS OF FREEDOM.