Friday, January 7, 2011

Em atmosfera de superaquecimento da esperança global

A satisfação com os avanços econômicos no País se dá num contexto político desolador.
Fernando Gabeira, hoje, 07.01.2011, no ensaio "Esperança em movimento", Estadão, A2.


Gabeira longamente rebate artigo em The Economist (edição impressa de 16.12, "The redistribution of hope"). O título que Gabeira confere ao seu texto é eco do início da matéria da revista britânica (em negrito na citação a seguir). O original do trecho a que ele se refere de pronto é:

Now hope is on the move. According to the Pew Research Centre, some 87% of Chinese, 50% of Brazilians and 45% of Indians think their country is going in the right direction, whereas 31% of Britons, 30% of Americans and 26% of the French do.
http://www.economist.com/node/17732859?story_id=17732859&CFID=158777728&CFTOKEN=24961673

O artigo da revista teve 458 recomendações e 140 comentários. Entre estes, o mais recomendado pelos leitores (180 o fizeram) também contesta fortemente a tese de que a esperança faz sentido.

Gabeira, adiante, desfiando a desolação, assim dispara contra a mais risível medida dos que abusam da absolutamente ingênua esperança das massas:

Como explicar que em tempos de preparação da Copa e da Olimpíada o escolhido para o Ministério do Turismo seja um deputado de 80 anos que jamais teve ligação com o setor? Um simples movimento para satisfazer o senador Sarney desarma o País diante de um teste internacional.


Diante da vasta evidência apresentada tanto nos comentários registrados na própria revista, quanto por nosso jornalista, ex-político, parece-me premente investigar melhor a gênese da esperança - o que a faz surgir, sustentar-se, a despeito dos fatos, dos contextos, dos robustos estudos.
Sobretudo, é mister ressaltar como a História é, em decorrência, cabalmente preterida sob os chavões desse clima de esperança superaquecido.

Sim, leitor, você mesmo está tão otimista... Olha para a capa de todas as revistas banais da semana e sente até orgulho. Vestida para lembrar uma virgem, a sexagenária repaginada pelas grifes tomou posse como Primeira Mulher. Como não delirar com isto?

Esse é meu ponto. Todos deliraram.
Eu não delirei, nem sequer senti nada, nada de bom, de positivo. Observei o andar superdeselegante na subida da rampa. Não lembraram logo do andar? Dilma Rousseff, toda produzida, mas caminhando daquele jeito? Além disso, notei também o lamentável efeito produzido pelo tom da vestimenta: a transparência. Os jornalistas foram extremamente bondosos. Lady Di, com sua saia transparente, não teve o mesmo tratamento. Dilma, consideremos também, nada revela de belo ao desleixar com o efeito da luz em sua saia.

Com todo esse circo, cria-se um contexto fantasioso que pega mais que resfriado ou dengue. Mas Gabeira teve o espírito crítico para propor uma tese primorosa, o ponto central de seu artigo:

Cai por terra a ilusão de que o avanço econômico produz automaticamente democracia, ou, no mínimo, melhora a qualidade dela.

Gabeira demonstra a falácia de nossa "democracia". Mas quem mais pensa como ele?
No segundo semestre de 2010, participei de cursos com juristas pós-graduados, do que memorizei duas declarações:


Vivemos num... "cer-to" estado de direito.

A Constituição não pode ser um monumento à hipocrisia.


Um advogado que me cercou com insistência então, disparou mais de uma vez: "Mas por que você está fazendo este curso? Eu lido com isso todos os dias, mas você..."

Como é que ele lida com "isto"? Por que tanto estranhamento com meu interesse em aprender?

Quem carece de algo mais evidente de nossa despolitização - e mera consciência que seja - do que essas manifestações cotidianas? Que mais é preciso para demonstrar a desolação que Gabeira aponta?

Palmas comandadas por uma mulher que toma posse como presidente da república... vaticana do brasil. Haja sac... para ouvir tantas, tantas palmas. Dilma provavelmente não declarará que ela é a opinião pública, mas vai bater palmas o mais que puder, sem que houver a menor oportunidade. Dá no mesmo. No mesmo efeito de que crescemos, crescemos, crescemos. Entorpecidos de tanto ouvir o mesmo chaveco. Mas cheios de... esperança.

Sim, esperança é a última que morre. Mas isso não é para que pensem que ela não morre. Ela morre! Ela já morreu. Morreu para o autor do comentário mais recomendado à matéria da revista aqui mencionada. Ela, tudo indicou ele, já morreu para Ciro Gomes, que disse estar de partida, por um bom tempo, para a Inglaterra. Para estudar.

Eu também sinto que preciso estudar. Para recomeçar, estudar a gênese da esperança de um povo surrado, cheio de clichês tolos, shibboleths; porque não gosta de estudar; está sempre cansado para pensar. E se convenceu para sempre, parece, da maior das tiradas - Deus é brasileiro! (o que pode estar ruim?)

Os entrevistados pela pesquisa citada na revista The Economist (e também citada por Gabeira) acreditam que seu "país marcha na direção correta".

Marcha. Coisa bem autoritária. Automática. Sem criatividade. Sem mérito.

Bem-dito. Publique-se.


 O texto de Gabeira, na íntegra, está abaixo:



Texto integral

Ao avaliar as perspectivas de 2011, The Economist afirma que a esperança está em movimento, ventos favoráveis sopram dos países emergentes: China, Índia e Brasil. Um dado que inspirou a afirmação foi uma pesquisa do Pew Research Center segundo a qual 87% dos chineses, 50% dos brasileiros e 45% dos indianos acham que seus países marcham na direção correta.
Esperança em movimento, ressalta o artigo, significa mais confiança dos consumidores e dos empresários que investem. Não há dúvida quanto a isso, e as pesquisas brasileiras apontavam, no fim do ano, um índice de aprovação do governo bem próximo do contentamento chinês: 83%.
No entanto, olhando de perto, há algo de perturbador nesses dados sobre China e Brasil. Cai por terra a ilusão de que o avanço econômico produz automaticamente democracia, ou, no mínimo, melhora a qualidade dela. O extraordinário crescimento material vai tornar o Partido Comunista Chinês dramaticamente anacrônico - eram as previsões. Mas, no momento, a cúpula chinesa não apenas está forte, mas estrutura uma espécie de frente antidemocrática em torno dela. Assim foram interpretadas as 17 cadeiras vazias na cerimônia de entrega do Nobel da Paz ao dissidente Liu Xiaobo, em Oslo. Os ausentes, influenciados pela China, eram quase todos países autoritários, uma espécie de clube de ditadores, como o classificou um jornalista alemão.
A satisfação no Brasil é medida pelo aumento do consumo, pelos ganhos salariais, pelo entusiasmo de grandes empresas e investidores estrangeiros. No entanto, isso ocorre num contexto político desolador. Uma das marcas da desolação é o estado do Parlamento, dominado pelo governo e distante da opinião pública.
Não temos aqui a Lei Habilitante, de Chávez, que o autoriza a tomar decisões sem consultar o Congresso. Mas estamos tão perigosamente próximos que em Minas surgiu algo parecido na forma de Lei Delegada. Apesar das diferenças essenciais entre Chávez e Anastasia, ambas suprimem uma fração do poder parlamentar, ambas mutilam a democracia.
A neutralização do Congresso não se faz apenas pela troca de favores, o decantado fisiologismo. Ela se faz também pelas medidas provisórias. É quase impossível rejeitá-las; chegam ao Congresso e são acrescidas de inúmeros penduricalhos pelos próprios deputados. De um modo geral, são propostas escusas, conhecidas na gíria parlamentar como jabutis, nome que é uma alusão à frase "jabuti não sobe em árvore, se está lá, alguém o colocou". É tão árdua a tarefa de derrubar jabutis que a simples aprovação do texto do governo acaba sendo sentida como uma vitória.
Já o distanciamento, que era grande, tornou-se gigantesco com o passo dado neste fim de ano por deputados e senadores ao aumentarem os próprios salários, numa sessão relâmpago. Eles sabiam que há otimismo com o crescimento, e sabiam também que isso se intensifica nas vésperas de Natal.
Tudo se passa como se os entusiastas do governo, embalados pelo consumo, considerassem a política apenas um preço a pagar pelo avanço econômico. Talvez contabilizem mais nesse preço os milhões destinados aos parlamentares, e os milhões desviados nos periódicos escândalos de corrupção. Nem todos se dão conta de que a submissão do Congresso mutila a democracia.
O próprio governo parece não compreender que paga um preço alto. Em certos momentos, paga com a perda da racionalidade. Como explicar que em tempos de preparação da Copa e da Olimpíada o escolhido para o Ministério do Turismo seja um deputado de 80 anos que jamais teve ligação com o setor? Um simples movimento para satisfazer o senador Sarney desarma o País diante de um teste internacional.
A escolha de um dissidente chinês para o Nobel é a afirmação de que o crescimento econômico não é um valor absoluto. O prêmio revela também que há um preço pagar. Um preço de outra natureza - a cadeira vazia e a prisão de Liu Xiaobo simbolizam isso.
No Brasil democrático, há um preço mais suave: nadar contra a imensa corrente que concilia crescimento econômico com decadência política.
Não se trata de negar a esperança em movimento. No caso brasileiro, é preciso apenas dotá-la de um mínimo de audácia para que abarque poder aquisitivo e democracia, juntos e misturados, como se diz na gíria.
Quando o Congresso decidiu aumentar os próprios salários, acima do padrão dos países mais ricos, Tiririca, eleito deputado, apareceu de sapato na mão, dizendo que era um dia de sorte. Muitos brasileiros, nesse dia, não acreditariam que os ventos planetários da esperança estavam soprando do Brasil.
Não há saída para esse impasse fora da política. Será preciso escolher o preço certo a pagar. Se a oposição considerasse esta hipótese e declarasse absurdo o preço que se paga hoje, talvez pudesse, gradativamente, convencer a maioria e, quem sabe, atrair uma área do governo que, por experiência própria, perceba o fardo negativo dos arranjos atuais.
O que hoje me parece claro é que a democracia não decorre do crescimento, como se fosse um fenômeno natural, estações se sucedendo ao longo do ano. A decadência do Congresso torna mais fascinante a ideia de democracia plebiscitária e nos aproxima, ainda que isso seja negado, da experiência bolivariana. É sempre bom lembrar que se o crescimento, por si próprio, não traz a democracia, não é também um apêndice do autoritarismo. Na cerimônia de entrega do Nobel, duas cadeiras vazias correspondiam a Venezuela e Cuba. A primeira registra crescimento negativo; a segunda, a julgar pelos óbvios vazamentos do WikiLeaks, não suporta mais três anos de pobreza.
Se para a Europa e os EUA foi um ano de desencanto, restou apenas o lugar-comum como traço de união planetário: a esperança é a última que morre.
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