Monday, May 3, 2010

Cuidado ao redigir - reestruturamos o artigo de um colunista, para o desespero geral da nação ficar mais defensável logicamente

Num evento de exibição de curtas, há dois dias, uma das produções logo cativou os presentes: aquela em que Dona Sebastiana falava o tempo todo. E nesse "tempo todo" - 11 minutos -, ela tocou em 30 assuntos diferentes. Não fui eu que contei: o curta-metragem informava isso no final, enaltecendo o carisma da referida senhora de sessenta e dois anos.

O carisma do escritor, porém, não pode dar conta de satisfazer o leitor quando o texto parece tentar competir com a fala errática de Dona Sebastiana. Não, eu não consigo gostar de um texto, digamos assim, saltitante.

Eles estão em toda parte - os textos que indicam que o escritor deveria partir de vez para a mídia da telinha, exceto, talvez, o Kindle e similares. Vou-me servir de um desses textos, um artigo publicado há dias na Folha, para mostrar o referido salteamento e como o texto fica mais "gostoso" de ler depois de passar por uma sempre devida revisão.

A escolha pelo artigo "Mrs. Dalloway", de Luiz Felipe Pondé, decorre de mera conveniência. Calhou de eu ter mais tempo naquele dia, bem como a disposição para me dedicar ao exercício redacional - que tomo como um desafio - de reestruturar aquele texto.

Trago isso para vocês porque são significativos e relevantes os efeitos de tal revisão, que hoje parece surpreeendentemente dispensável em algumas oficinas da palavra. 

Como, mais precisamente, apresentarei tal reconstrução do texto em foco?

Vou, na primeira parte, fazer comentários, apontando os "saltos" e outros defeitos, bem como a solução por mim adotada. É, certamente, após a leitura de todo o texto que se pode passar a propor mudanças, especialmente na ordem de exposição das ideias. Na segunda parte, exibo o resultado final, o texto completamente reordenado e com pequenas, mas salutares, correções. Na terceira parte, o leitor encontra o texto original, de Pondé.


PRIMEIRA PARTE
AUDITORANDO  O  TEXTO

"Mrs. Dalloway"

LUIZ FELIPE PONDÉ
Publicado na Folha, p. E10, em 12 de abril de 2010


Morava eu num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia na porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi "Mrs. Dalloway", publicado em 1925.

"Lia na porta" leva o leitor a entender que o texto lido estava pregado na porta. Mas o contexto me leva a concluir que o autor quis dizer que "lia à porta de seu quarto".
Vou desmembrar esse parágrafo, intercalando outro, após "cachimbos". Isso porque o autor, parágrafos adiante, volta ao assunto de sua estada num kibutz. E tal fica muito melhor se mantido junto, e assim começamos a eliminar os "saltos" de assunto, em que é mestra Dona Sebastiana, na arte (ou desastre) da conversa.
O que vou intercalar? O teor do quarto parágrafo, eliminando "Na época", que, no original, está mesmo sem nexo, já que o leitor, depois de passar por Nicole Kidman, o Mito de Sísifo e tiradas filosóficas precipitadas, certamente se perguntou ao atingir aquele parágrafo: Época? Que época é essa? Aquela lá do início, a do kibutz...
A intercalação, portanto, após "cachimbos", fica assim: Atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo. 

Eliminamos "Na época", justamente porque, com o rearranjo das ideias, esse gancho a que recorre o autor, para "voltar" a assuntos deixados lá atrás, resulta, ótimo sinal, dispensável. Prosseguimos, abrindo novo parágrafo, com o restante do primeiro parágrafo do original: "Durante alguns meses" até "1925".
No original, o segundo parágrafo é este:

Revi o maravilhoso "As Horas" (2002), com Nicole Kidman. E sempre quando vejo esse filme me lembro de como ela foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimeno último da melancolia.

De pronto, este trecho contém uma combinação de palavras grotesca: "sempre quando". Segundo, o "ela" leva o leitor a entender "Nicole Kidman". Mas aposto... não, não é o caso de apostar. Tenho certeza de que Pondé se refere, com "ela", à Mrs. Dalloway, persongem-título de livro de Virgínia Woolf que, no texto original de Pondé, já é introduzida no primeiro parágrafo. Isso é um grande problema para o entendimento do texto original. Grande problema. Vamos também saná-lo. Reescrevemos o trecho, assim: "Sempre que vejo o maravilhoso filme "As Horas" (2002), com Nicole Kidman, me lembro de como Mrs. Dalloway foi essencial"... prosseguindo como o original até "melancolia".
Para combater mais um salto, entretanto, vamos deixar esse parágrafo para bem mais tarde. Depois de "1925", adiantamos uma sentença incluída no sexto parágrafo, sem nexo nenhum com ele. E tal sentença se encaixa muito bem após aquela que encerra o primeiro parágrafo do original (agora, nosso segundo parágrafo): [Na época, já] Sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra.
Além de eliminar "Na época", para o que já ofereci explicação, elimino também "já", porque me parece imprecisamente pretensioso. Dá a ideia de que Pondé, o autor, ficou sabendo da morte de Virgínia bem antes da maior parte do mundo ou, pelo menos, de Israel ou do tal kibutz. Mas esse "já" me parece apenas coisa de conversa salteada, e não quer de fato dizer que o autor teve algum privilégio naquela informação.
Prosseguindo... não. Nada de Nicole Kidman ainda. O autor está com isso, tudo indica, fresco na memória, que não consegue organizar. Para sanar isso, vou prosseguir, num novo parágrafo, "adiantando" a primeira sentença do sétimo parágrafo, que faz um nexo muito bom com "conhecer sua obra", ponto em que paramos, uma vez que o autor então fala de um dos livros que compõem tal obra:
O que me encantou em Mrs.Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina.
Acrescentamos, no mesmo parágrafo, a negação do que é atribuído, na sentença acima, à personagem de Virgínia Woolf, e que está no meio do oitavo parágrafo:
Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso.
Ao ler o Texto Refeito, o leitor perceberá melhor que essa minha escolha dá cadência e bem mais força ao texto, especialmente ao considerar, então, sua reconstrução na totalidade.
Nosso parágrafo seguinte reúne duas sentenças apartadas no oitavo parágrafo do original. Novamente, o contraste entre elas não apenas justifica nosso arranjo do trecho, mas permite uma concatenação melhor de todas as ideias - boas - do autor do original que, lamentavelmente, as deixa emboladas. Eis as duas sentenças:
Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma.
Acrescentamos, neste novo parágrafo que construímos, a ideia que serve muito bem para introduzir todo o teor do longo décimo parágrafo do original, em que o autor oferece ilustrações para respaldar sua principal tese, justamente esta:
Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.
Nosso próximo parágrafo, portanto, é o referido décimo parágrafo do original, que aproveitamos integralmente, sem modificações:
Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas. Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.

Ao repensar todo o texto original, decidimos que o próximo trecho que deveria se seguir é o nono e, logo depois, o décimo-primeiro, que é o último no texto original,  mas não o é em nosso texto refeito. Como aproveitamos esses parágrafos sem modificações em relação ao original, não vamos reproduzi-los aqui.
O próximo parágrafo, em nossa reconstrução, começa com a parte do sétimo parágrafo ainda não aproveitada por nós. Esse trecho serve para ilustrar o ponto do parágrafo (o décimo-primeiro no original)  que passamos a tomar como o anterior a esse nosso novo parágrafo. Uma única, simples modificação - "ela" é susbstituído por "Mrs. Dalloway:
No dia em que se passa a história, Mrs. Dalloway organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.

Com isso, Pondé adentra o tema "tristeza, melancolia e afins. Assim, vamos reorganizar o texto original de acordo.
Após "confiar na tristeza", portanto, inserimos, em novo parágrafo, a outra parte do sexto parágrafo no original - "Numa fui um deprimido..." até "melancolia profunda".
O parágrafo posterior é o segundo no original (aquele que menciona Nicole Kidman), com as modificações que introduzimos e já detalhamos antes (em vermelho, abaixo). O trecho fica assim:
Sempre que vejo o maravilhoso filme "As Horas" (2002), com Nicole Kidman, me lembro de como Mrs. Dalloway foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.

No crescendo da temática sobre melancolia, chegamos ao deserto.
Uma ideia difícil de ser inserida, porque o próprio autor não a faz congruente dentro do seu texto. A razão pode ter sido a limitação de espaço para publicação, ou mesmo a "síndrome de Dona Sebastiana", que joga tudo e qualquer coisa dentro da conversa, em qualquer ordem. Ficamos assim tentados a eliminar todo o quinto parágrafo, no original, de nosso texto refeito. Decidimos, contudo,  mantê-lo em grande parte, eliminando apenas duas sentenças, que "voam ainda mais na maionese".
Ainda assim, ao ler o texto refeito, nota-se facilmente que este nosso próximo parágrafo sai da trilha da lógica. Tem a ver com a estada do autor em Israel, mas ele deveria reservar outro artigo para explorar as ideias do quinto parágrafo de "Mrs Dalloway", quando até mesmo esta poderia ser, novamente, objeto de análise. 
Com esforço, fazemos uma relação sútil da "experiência no deserto" com "rompimentos com o cotidiano", ideias distantes no original. Procurando associar essas ideias - sem acrescentar 
nenhuma palavra ao texto -, é que propomos essa nova sequência. Aproveitando o quinto parágrafo no original em novo parágrafo, chegamos, enfim, a isto:
Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.
Note-se que fazemos o único corte de trechos em todo o texto: eliminamos duas sentenças, no original, no mesmo parágrafo: (1) "O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível" e (2) "Humildade nada tem a ver..." Esses trechos podem conter ideias geniais na ótica do autor, mas elas não são sequer precariamente desenvolvidas.
Então, como justificamos, inserimos, após o deserto, o trecho em que há alusão a "rompimentos do cotidiano"; é a vez do terceiro parágrafo do original:
Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando, por isso a derrota, como no livro "Mito de Sísifo" (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.
Mas esse parágrafo também foi modificado por nós. Isso porque nos aproximamos do desfecho, que perde a força em um parágrafo muito longo, como é, a exemplo de quase todos os parágrafos do original, o último parágrafo em "Mrs. Dalloway". Considerando a tese do artigo, o desenvolvimento das ideias e o impacto que procuramos causar, partimos o parágrafo reproduzido acima em dois. Ficou assim:
Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando.
Por isso a derrota, como no livro "Mito de Sísifo"(1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.
A data faz o texto "parar", perder o fôlego, pelo menos. E ela é desnecessária. Mas... deixemo-la lá. Com a quebra do párágrafo em dois, isso não faz tanto estrago.

Então, finalmente, o desfecho. O nosso desfecho. Para não desperdiçar justamente Mrs. Dalloway, não perdê-la de vista na conclusão do texto, pinçamos, dos meandros do oitavo parágrafo, uma sentença conclusiva sobre a personagem-título, que fazemos acompanhada - e muito bem - da segunda parte do parágrafo que desmenbramos (o terceiro no original). Não vou mostrar o resultado aqui. Leia todo o Texto Refeito e, então, a conclusão, a bela conclusão de nossa reconstrução virá no momento certo.

Ressaltamos que aproveitamos praticamente todo o teor do artigo original. Só eliminamos, por não haver concatenação com todo o resto, isto: O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar.
Veja, a seguir, como obtivemos um texto que não lembra uma conversa errática, tampouco ficou chato ou enigmático. 
O original de Pondé vem depois do texto refeito.
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SEGUNDA PARTE

RESULTADO - TEXTO REFEITO
 
Publicado na Folha, p. E10, em 12 de abril de 2010
 
 "Mrs. Dalloway"

LUIZ FELIPE PONDÉ

Morava eu num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia à porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo.

Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi "Mrs. Dalloway", publicado em 1925. Sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra.

O que me encantou em Mrs. Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina. Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso. 

Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma. Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.

Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas. Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.

No fundo de nossa alma habitam monstros que a muito custo se mantêm em silêncio. Esses monstros, quando o mundo silencia, surgem na superfície mostrando o ridículo de nossa batalha diária.

Entre as funções da civilização, uma é a tentativa de calar esses monstros criando ritos, rituais, festas para celebrar a frágil vitória contra essas criaturas deformadas, atormentadas pelo completo desinteresse pela vida. A verdade é que não há como civilizá-las, a não ser ensiná-las que elas não têm lugar no mundo dos vivos e que, por isso, devem sucumbir à rotina da infelicidade como norma da vida.

No dia em que se passa a história, Mrs. Dalloway organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.

Nunca fui um deprimido clínico, mas sempre me surpreendi pelo fato de não sê-lo. Muitas vezes pareceu-me que, se fosse viver pelo que a razão me diz, já teria sucumbido à melancolia profunda.

Sempre que vejo o maravilhoso filme "As Horas" (2002), com Nicole Kidman, me lembro de como Mrs. Dalloway foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.

Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.

Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando.

Por isso a derrota, como no livro "Mito de Sísifo" (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno. Mrs. Dalloway é o fim de quem ingenuamente acredita que as coisas sempre darão certo, bastando festejar a rotina comum.
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TERCEIRA  PARTE

O  TEXTO ORIGINAL

"Mrs. Dalloway"
LUIZ FELIPE PONDÉ

PRIMEIRO PARÁGRAFO
Morava eu num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia na porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi "Mrs. Dalloway", publicado em 1925.

SEGUNDO PARÁGRAFO
Revi o maravilhoso "As Horas" (2002), com Nicole Kidman. E sempre quando vejo esse filme me lembro de como ela foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.

TERCEIRO PARÁGRAFO
Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando, por isso a derrota, como no livro "Mito de Sísifo" (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.

QUARTO PARÁGRAFO
Na época, atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo.

QUINTO PARÁGRAFO
Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.

SEXTO PARÁGRAFO
Na época, já sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra. Nunca fui um deprimido clínico, mas sempre me surpreendi pelo fato de não sê-lo. Muitas vezes pareceu-me que, se fosse viver pelo que a razão me diz, já teria sucumbido à melancolia profunda.

SÉTIMO PARÁGRAFO
O que me encantou em Mrs.Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina. No dia em que se passa a história, ela organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.

OITAVO PARÁGRAFO
Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. Mrs. Dalloway é o fim de quem ingenuamente acredita que as coisas sempre darão certo, bastando festejar a rotina comum. Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma. Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.

NONO PARÁGRAFO
No fundo de nossa alma habitam monstros que a muito custo se mantêm em silêncio. Esses monstros, quando o mundo silencia, surgem na superfície mostrando o ridículo de nossa batalha diária.

DÉCIMO PARÁGRAFO
Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas. Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.

DÉCIMO PRIMEIRO e último PARÁGRAFOEntre as funções da civilização, uma é a tentativa de calar esses monstros criando ritos, rituais, festas para celebrar a frágil vitória contra essas criaturas deformadas, atormentadas pelo completo desinteresse pela vida. A verdade é que não há como civilizá-las, a não ser ensiná-las que elas não têm lugar no mundo dos vivos e que, por isso, devem sucumbir à rotina da infelicidade como norma da vida.
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