Sobre "Igreja e Estado laico", artigo de Dom Dimas,
secretário-geral da CNBB,
secretário-geral da CNBB,
publicado na Folha em 27/12/2009
Neste blog, o artigo está AQUI:
http://mariangelapedro.blogspot.com/2009/12/valsa-da-igreja-no-fim-do-ano-bailar.html
Último domingo do ano. Espaço o mais nobre possível, da Folha de S.Paulo. A Igreja Católica apresenta seu show sem efeitos visuais, mas com muitos efeitos redacionais. Texto assinado por representante da CNBB: "Igreja e Estado laico". (CNBB- Confederação Nacional dos Bispos do Brasil)
As cortinas se abrem. O texto é muito revelador, mas é preciso saber ler.
Aproximando
Para trazer as revelações da Igreja para vocês, começo aproximando dois pontos, que o artigo deixa bem longe um do outro. O primeiro:
"... a igreja preza e respeita a verdadeira laicidade do Estado e ... não tem a menor intenção de assumir função que não seja sua ou que contradiga sua natureza". (final do quarto parágrafo do artigo) (o destaque é nosso)
O segundo:
"O próximo ano se reveste de grande importância para o país, considerando que será um ano eleitoral. A CNBB não se omitirá no seu papel de colaborar para a formação de uma consciência crítica dos cidadãos a fim de que sejam os protagonistas na solidificação de nossa democracia". (último parágrafo e fecho do artigo) (o destaque é nosso)
Seria o papel a que se refere o último parágrafo coerente como a "função" da igreja?
Estaria tal papel afinado com sua natureza? Esta segunda questão é mais refinada. Afinal, seria a "natureza" da igreja algo não óbvio para a maioria?
O que entender quando Dom Dimas alude à "formação de uma consciência crítica'? Trata-se de desenvolver a capacidade individual de autoquestionamento? Ou acirrar a intolerância dos católicos em relação a outras igrejas?
Entre esses dois trechos, a redação de Dom Dimas traz à tona a agenda da Igreja de Roma para o próximo ano, no que concerne o Brasil. Uma agenda com disposição claramente política e não espiritual.
Adianto que o texto em foco é um texto-valsa. Um dizer-contradizer. Um acusar para fazer exatamente o mesmo. Uma mentalidade antiga, que baila em cenário novo.
Desenvolvo uma longa análise desse texto de Dimas, que é bispo-auxiliar do Rio de Janeiro e teólogo graduado. Minha análise conduz a algumas perguntas, que vou apresentar antes de prosseguir com a análise, pelo fato de que o leitor gosta mais de ler perguntas do que análises. E as perguntas, fazendo o leitor mais alerta, podem ajudar na assimilação da análise que se seguirá.
Três perguntas e meia
Assim, perguntemos a Dom Dimas:
1) É falsa a notícia de que a Igreja de Roma pleiteia um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU? Isso está coerente com sua "natureza e função"?
2) O Banco do Vaticano vai alegar, até o fim dos tempos, a soberania do Estado do Vaticano para se eximir e não enfrentar a verdade histórica, como a que emerge da acusação formalizada, em 1999, em tribunal dos Estados Unidos, de o Banco do Vaticano ter amplamente lavado os, e retido parte dos, bens confiscados das vítimas do holocausto na ex-Iugoslávia?
3) A defesa da 'dignidade humana', em vez da salvação das almas, será tão ou mais eficaz para a manutenção do poderio da Igreja de Roma? A sutil, mas visível, troca da vida eterna no além pelo aqui e agora do novo apelo - que evoca a dignidade e a formação de consciência crítica - não expõe a Igreja a mais questionamento sobre sua "tradição histórica", que é frontalmente avessa a tal dignidade e autonomia do ser?
A pergunta 3 pode ser ainda desdobrada assim:
Ao cultivar outros terrenos base, fora dos agora amplamente questionáveis mitos e milagres, a Igreja não corre risco maior ainda de rachar, especialmente diante de sua histórica falta de vocação para uma espiritualidade mais avançada?
Antes, acusações
Retomando a análise do texto da CNBB, temos que "textos eivados de revanchismo e ideologia [são] inadequados para quem propugna por uma sociedade democrática e cidadã", reza o segundo parágrafo.
Ao ler isso, me ocorreu trocar "rios de letras em brasa" (parte do título deste blog) por "gotículas de água fria abençoada". Contudo, não me vi convencida de que isso é mais adequado à democracia e cidadania. Apenas combina mais com cordeirinhos cheios de submissão, ávidos por afastar o espectro, tão temido, dos espíritos inteligentes e questionadores, que a Igreja, repetidamente, colocou literalmente na brasa.
Sacada de primeira
Leitor, uma pergunta para você: Não teria você se sobreposto ao texto e lido, no final do terceiro parágrafo, "sociedade democrática e cristã", em vez de democrática e cidadã? Pois. Percebeu como catequese, lavagens cerebrais em geral, funcionam? Dom Dimas trocou cristã por cidadã. Não, não é à toa.
O primeiro termo é religioso, enquanto o segundo é político.
Com o reconhecimento do estatuto jurídico da Igreja pelo Estado brasileiro, além de a bandeira do Vaticano ter ido parar na porta da Igreja mais rica desta cidade, ao lado da bandeira nacional e da do estado, temos, como aponto na pergunta 3, uma guinada estratégica significativa. Ora, pois! (E não foi à toa que tirei um notão em estratégia, no curso que fiz na Inglaterra.)
Os "textos eivados" do terceiro parágrafo introduzem, justamente, a questão do acordo Santa Sé-Brasil. Santa Sé é o nome da Igreja Católica no âmbito do direito público internacional. Os adjetivos negativos atribuídos por Dom Dimas a tais textos decorrem de eles constituirem manifestações contrárias ao acordo, que esse bispo ainda avalia como "equívocos e interpretações errôneas". Sim, no mais impecável estilo-valsa, Dom Dimas alude também a "reflexões respeitosas, com argumentações sólidas e fundamentadas", mantendo-se vago em ambos os casos.
Contra o acordo - nomes aos bois
Deixando a dança, tivemos, até onde pude acompanhar, manifestações firmemente contrárias ao acordo, das seguintes entidades:
Associação dos magistrados (juízes) brasileiros - AMB
MEC - Ministério da Educação e Cultura
O Estado de S. Paulo, em editorial "A fé como negócio", no qual afirma que Lula cometeu um equívoco ao assinar o acordo (em novembro do ano passado, no Vaticano) e pede ao Senado que não o aprove. A Cãmara acabara de aprová-lo.
Uma ONG católica - Pelo Direito de Decidir - também foi contra.
Num estágio anterior das negociações, quando, em 2007, o papa veio ao Brasil, o Itamarati (Ministérios das Relações Exteriores) orientou o presidente Lula a "desconversar" diante da lista de demandas papais, também evocando a laicidade do estado brasileiro. Isso significa que há separação entre Igreja e Estado.
Poderíamos ainda falar de "equívocos e interpretações errôneas"? Por isso, a redação de Dom Dimas é calculadamente vaga, não mencionando entidades contrárias ao acordo, enquanto apela, ao que parece esquecida do ataque antes desferido a outros "textos eivados de ideologias":
"À exaustão repetimos o quanto a igreja preza e respeita a verdadeira laicidade do Estado"... E, nessa apelação, leitor, note que valeu até grafar igreja com i minúsculo, diante do Estado. Oh! Isso imita a estratégia que dá suporte até hoje ao Crsito católico - mostre-se o mais humilde dos escravos, antes de se impor ao mundo.
Valsa
Sem dúvida, isso representa uma mudança significativa na forma, na aparência, na postura meramente exterior da Igreja de Roma. Os assessores do papa devem ter lido o bestseller When Giants learn to dance [Quando gigantes aprendem a dançar], de Rosabeth Kanter. Gigantes são, aqui, empresas muito grandes.
Tanta manobra do Gigante deve nos dizer do tamanho do nosso constrangimento de, diante de tantos "não" de peso, o acordo ter sido aprovado. E, na Câmara, ele só passou por causa de um artifício. Dom Dimas, em seu artigo, logo irá tocar cabalmente nesse ponto também.
Que artifício? Na mesma sessão da Cãmara voltada para a votação do acordo com a Igreja de Roma, se costurou, ali, no calor do momento, um "projeto" (alguns falaram de pré-projeto) de Lei Geral das Religiões, que serviu para fazer com que os deputados evangélicos, ou afins a eles, parassem de reclamar isonomia - tratamento igual - e dessem seu sim ao acordo. É justamente uma manifestação ideologicamente contrária a esse projeto de lei - que garante tratamento igual a todas as religiões - que Dom Dimas apresenta alguns passos de valsa adiante.
Acompanhemos o bailado no texto:
1) Respeitamos o Estado - somos igreja com i minúsculo.
2) Mas... isso não quer dizer que Estado e igreja não possam "fazer parcerias"... para o "bem comum de toda uma população".
Nossos fiéis apenas? Não, todos os cidadãos
Leu bem? Com o reconhecimento jurídico da Igreja Católica, através do acordo, a Igreja ampliou seu público-alvo: não fala mais apenas de católicos (sim, embora conte com a grande maioria brasileira católica... mas, reconheçamos, de um catolicismo 'caótico'). Agora, o público-alvo da igreja é a nação. O cidadão. Todos eles. Pois. A política avança mais do que a religião. (Obrigada, leitor. Sim, só eu para sacar tudo isso, num texto aparentemente inocente.)
Você já está nervoso? Sim, eu entendo sua reação. Mas esse nervosismo não leva a nada de politicamente bom.
O acordo passou
E no Senado? Unanimidade. Todos deram seu sim. E qual foi a desculpa? Esta: a Igreja (Santa Sé) já firmou acordos com centenas de outros países. Claro, isso não quer dizer que o teor do acordo seja o mesmo ou sequer semelhante. E o acordo com o Brasil tem vinte itens. Jura que foi essa a alegação? Sim. Foi o que saiu nos grandes jornais.
"...o Estado é laico, não, porém, a nação", ousa o bispo, logo adiante. Ou seja, embora o Estado seja laico, a nação não é laica. (no caso do Brasil, eu diria que é louca...) Bela retórica. A nação sequer é componente obrigatório de um Estado. Assim reza o direito internacional público. Um dos três componentes obrigatórios para se ter um Estado é população, que não é o mesmo que nação. (os outros dois são território e governo)
Sentiu o drama, leitor? Como a Igreja sempre pôde tudo? É justamente com esse "rebanho político ampliado" - gente, essa foi boa mesmo! até eu gostei!
É com esse rebanho político ampliado, repetindo, que a Igreja clama que "O próximo ano se reveste de grande importância para o país (p minúsculo), considerando que será um ano eleitoral. A CNBB não se omitirá no seu papel... de colaborar para a formação de uma consciência crítica dos cidadãos a fim de que sejam os protagonistas na solidificação de nossa [nossa... hum! olha a parceria aí, gente!] democracia".
Afrontados? Não? Então vocês já morreram. E a Igreja não quer mais saber de mortos. Isso é patente, diante desse discurso de Dom Dimas. Mortos não têm consciência.
Dispensando o diabo
Ah! Examinemos a tal consciência, que, agora, nada mais lembra culpa por pecados, penitência. Gente, repito, o Gigante dos gigantes a-pren-deu a dançar. E rápido!
Sim, a consciência não é mais pesada; é "crítica". O que está por trás disso? Aquela manifestação contrária à Lei Geral das Religiões, ou "lei da isonomia na religião", que eu deixei em suspenso lá atrás.
Vamos retomar o bailado? Fomos até o passo 2. Agora, o terceiro.
OK. Recapitulando: passo 1- o Estado é laico; passo 2 - nada impede parcerias.
Passo seguinte.
3) Reviravolta: "Assusta-nos [chi... exagero calculado!], contudo, a evocação da laicidade do Estado para um série de outras iniciativas [que ele não diz quais são, de propósito], beirando a intolerância religiosa, ou a negação das igrejas, especialmente a católica..."[ah! só faltou dizer, com todas as letras, que a igreja católica, como sempre, é a mais perseguida.] Para onde o dançarino está indo? Você não sabe. Ele agarrou seu braço, torceu. Você está nas mãos dele. E bem tonto. Passo seguinte.
4) O Estado é laico - meio passo atrás, em relação ao "assusta-nos a evocação da laicidade do Estado". Mas a nação não é laica. Agora você está completamente tonto. Por que a nação não é laica? Porque sobram (hum...outro exagero calculado) pesquisas que atestam o crescimento da espiritualidade. Ah! Por isso andaram dando tantas bolsas para pesquisa sobre isso... Sim, leitor, tudo confuso: cidadania, espiritualidade. É para você cair de tão tonto.
Passo seguinte.
Mesmo nível uma o...
5) Com você caindo de tonto, o bispo enfia a faca. Ataque: "Não colocamos no mesmo nível uma série de movimentos religiosos [desmerecendo outras religiões, com essa expressão] que se autodenominam "igrejas". A muitos deles faltam tradição histórica e todo um arcabouço que os configure como igreja".
Papo de mausoléu. Mas cola até hoje.
Arcabouço me lembrou de fossos da Inquisição, que não acabou. Só mudou de nome. E não é à toa que o bispo fala de "tradição histórica" - ele sabe que praticamente ninguém sabe da verdadeira história. Mas o mais importante é perguntar: o que o arcabouço e a tradição histórica têm a ver com espiritualidade? Pois. A espiritualidade nacional é caótica! A igreja ainda tenta "ordená-la" a base de arcabouços e tradições históricas. Aqui, contudo, o objetivo de Dom Dimas é atingir... os concorrentes. Com essa disposição, ele dá o passo seguinte.
6) Lamentavelmente [ridículo fingir que lamenta o crescimento da concorrência. Mas é o que o bispo Dimas faz], a rendosa [hum...você, tão tonto, não percebe a isca. E a morde] teologia da prosperidade tem sido motivadora da criação de inúmeroas "igrejas". [Sim, igrejas está entre aspas, para diminuir tais igrejas, sem tradição, sem inquisição, sem livro sagrado roubado de primeira-mão. Coisa roubada, que passa de mãos... não tem tradição, né?] [Ué? Por que você me ataca? O que está errado no que eu disse?]
O bispo está entusiasmado agora. Passos vigorosos. Vamos ao próximo.
7) "...permitimo-nos mesmo afirmar a existência de um perigoso mercado da fé". [Gente, eu adoro essa apelação ao perigo. Adrenalina. Mas o efeito na maioria é outro. E o bispo sabe disso também. Os hereges são perigosos. E assim milhões deles foram exterminados, com os medrosos apoiando. Tenho quase certeza de que, em outra vida, fui queimada pela Igreja. Talvez mais de uma vez. Sim, sou muito tenaz.]
Pare a dança! Perigoso mercado de fé?
Dom Dimas insinuara que os outros são intolerantes com relação à igreja católica. E o que ele está sendo AGORA, em relação a igrejas que ele escreve entre aspas e chama de perigosas? Ah! Caiu a ficha!
Bem nos serviu; agora, lixo
8) O bispo joga você para trás. Sua coluna quase dobrada, virada para o lado errado. Não é tango. É, mas palavras dele mesmo, "formação de consciência crítica, para solidificar nos-sa democracia". Você ainda se lembra para que lado fica o inferno? Parece-me atraente nesse pós-acordo. Exagero? Eis este passo de quebrar a coluna: "Daí [palavra de conclusão] ser uma temeridade [palavra vaga, ideológica, condenada pelo bispo, nos outros...] a...Lei Geral das Religiões, que está no Congresso para ser votada [Vejam! Dimas vira jornalista, com as últimas do ano! Você, leitor, nem ficou sabendo quando o acordo com a Igreja estava no Congresso, né? É assim que a Igreja católica não se nivela às outras, sacou?]
Pare! Sua consciência crítica está formada, com sua coluna dobrada e você absolutamente inebriado. Você vai ecoar as palavras do bispo sobre "perigoso mercado de fé", teologia rendosa... e eu ainda nem terminei com o passo! Voltando!
... ser uma temeridade... que está no Congresso para ser votada, dado que nivela todas as igrejas e religiões sem distinguir umas das outras.
Agora sim. Tudo bem dito. E você concorda com o bispo, claro! Com todo o circunlóquio que antecedeu este contundentemente claro desfecho, a introdução das garras na jugular passa como abraço fraterno. Como aquelas "igrejas" usurpadoras podem ser niveladas à nossa católica, cheia dos arcabouços e tradições? Pois. Você, leitor, é mesmo um baba... Com "consciência crítica" ainda por cima. E então, lembra-se do caminho para o inferno?
Mais na agenda
Não; ainda não acabou. Mas vou correr mais, agora, com a análise. As intenções e artimanhas da Igreja, através do bispo Dimas, já foram bem esclarecidas. E queremos ressaltar que a Lei Geral das Religiões, que Dimas agora condena como "temeridade", foi o que, em estágio de projeto, permitiu que o acordo com a Igreja fosse aprovado na Câmara. Sim, o raciocínio é este: agora que nosso acordo passou, damos um jeito naquela lei, que não nos é conveniente.
Depois de tachar a Lei Geral das Religiões de temeridade, Dom Dimas sopra a ferida no parágrafo seguinte, e tal manobra até será avaliada como "contradição" pela grande maioria. Mas não se trata de contradição desta vez, mas de manobra, passo calculado. Importante também é notar que, nesse parágrafo, seguinte ao da condenação daquela lei, em fase de votação, aparece Igreja Católica, desse jeito, em maiúsculas. Não me parece descuido. É mais provável que seja calculado também, já que, naquela altura do texto, o bispo julga que defendeu cabalmente a superioridade da igreja católica em relação às demais.
Igreja Observadora
A seguir o bispo diz que a Igreja participou, como observadora, de nossa primeira Conferência Nacional de Comunicação. Pouca bobagem. A Igreja é observadora em diversos órgãos internacionais de peso, como a OMC - Organização Mundial de Comércio. A lista completa é encontrada no site do Vaticano - vatican.va. Não vou procurar o link agora. Assim que tiver oportunidade, incluo isso numa outra postagem.
Quanto a esse assunto, o que ressalto é, de novo, o contraste entre a declaração de que a Igreja não tem a "menor intnção de assumir função que não seja sua"... e o julgamento, em tom de veredicto, que o bispo Dimas oferece agora: "Que o uso das concessões [de rádio e TV] não sirva a qualquer tipo de proselitismo, seja religioso, seja político [!], nada a contestar". Nada humilde agora. Claro que "qualquer tipo de proselitismo" exclui a "outras igrejas", enquanto deixa a católica no ar.
O caldo entorna
Mais valsa. O passo seguinte sugere que o bispo notou que ele não conseguiu se segurar no passo anterior e, assim, ele tenta agora revestir seu veredicto de legitimidade: "É exatamente esse respeito da igreja (minúscula novamente) pelo Estado laico que lhe permite tomar posição (ah... ele apenas "tomou uma posição", vejam só!) em relação a questões que atingem diretamente a cidadania e a dignidade da pessoa humana [ou seja, tudo e qualquer coisa pode ser incluído aí, até a concessão de rádio e TV], assumindo sua defesa de maneira incondicional. [isso sim é perigoso; incondicional significa que ninguém detém a Igreja quando ela decide "tomar uma posição"]
Para você saber o que exatamente isso significa, voltemos a 2005. Havia uma ministra da área de políticas para as mulheres, muito segura, decidida, e empenhada em descriminalizar, ou "legalizar", o aborto. Seus dados estão abaixo. Então, chegou a CNBB, furiosa por não ter sido convocada para participar do grupo de trabalho constituído pela ministra. Após a visita da CNBB, saiu uma foto da ministra no jornal, que mostrava grande constrangimento no rosto dela. Entre quatro paredes, leitor, não há valsa. É tiro e queda.
Para ler a matéria sobre isso na Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u105986.shtml
Médica sanitarista e ex-reitora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirma que todos serão ouvidos, mas que o Estado brasileiro é laico.
"Fui conversar com a CNBB. A igreja tem a sua opinião, que deve ser respeitada pelos seus fiéis", disse a ministra Nilcéia numa entrevista à Folha.
É justamente essa limitação que se fazia à Igreja - cuja voz era restrita a seu rebanho - que o texto de Dimas põe hoje abaixo. Aprendemos com Dimas? Então devemos dizer que O Estado pode ser laico, mas as mulheres não são, nem os embriões e fetos.
Para ler a reportagem na Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u106512.shtml
Vejamos uma sequência interessante:
27/09/2005- Atrasado dois meses, projeto do aborto chega à Câmara (manchete da Folha)
01/12/2005- Projeto de lei do aborto tem sua primeira derrota (manchete da Folha)
O assunto morreu. Mas ressuscitou.
Abortando o aborto
Em 2007, grandes farpas viviam no ar, na véspera da chegada do papa Bento ao Brasil.
09/05/2007 - Aborto contrapõe governo e igreja na chegada do papa http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u92077.shtml
Nesta matéria, lê-se que Lula pretende evitar falar sobre aborto com o papa. Ora, e o papa está vindo por quê, se não para acabar com tamanha pendenga?
Feito: o primeiro discurso de Bento aqui foi, retirando-se as saudações efusivas, para condenar indiretamente o aborto:
Estou muito feliz por poder passar alguns dias com os brasileiros. Sei que a alma deste povo, bem como de toda a América Latina, conserva valores radicalmente cristãos que jamais serão cancelados. E estou certo que em Aparecida, durante a Conferência Geral do Episcopado, será reforçada tal identidade, ao promover o respeito pela vida, desde a sua concepção até o seu natural declínio...
A discussão continuou, agora com foco na pílula do dia seguinte.
Por fim, claramente, a Igreja ganhou a parada. Há um ano (desde a assinatura do acordo no Vaticano) não leio nada sobre legalização do aborto ou pilula do dia seguinte nos jornais.
Pedófilos? Políticos é que vão para a cruz
Antes de finalizar, com a alusão ao ano eleitoral, conforme já comentamos, bispo Dimas cita a Campanha Ficha Limpa, com a qual a Igreja pressiona o Congresso para aprovação de um projeto de lei que visa "bloquear o caminho dos que, deliberadamente, fizeram da política um escudo que os proteja e esconda os crimes graves de que são autores".
E os pedófilos que fizeram da batina um escudo com o mesmo propósito? Não teria sido "deliberadamente" nesse caso? Mas o acobertamento pela Igreja, certamente, é deliberado.
A consciência crítica que a Igreja clama promover precisa ser um tanto torta. E gostar muito mais de baladas e valsas do que de revisões e questionamentos.
Relembrando
Da história:
Foi a própria Igreja de Roma que determinou a separação entre Igreja e Estado, embora tenhamos tendência a julgar o contrário. Nossos julgamentos são quase sempre equivocados...
O Estado apontava os bispos. A Igreja quis acabar com essa interferência. Essa foi uma das razões para a Igreja de Roma querer a separação. Se ela não o quisesse... Pois.
Como o artigo em foco indica, a separação não significa que a Igreja fica de fora de coisas tão importantes... quanto a "consciência dos cidadãos" em um ano eleitoral!
A igreja (ainda que escrita com i minúsculo) não é igual a qualquer outra igreja. Ah! Você nem teria percebido esse ponto crucial do artigo. A propósito, que tal aprender a ler melhor no ano que logo chega?
Onde está, no artigo, essa 'distinção' da Igreja de Roma em relação às outras igreja? Vamos lá ver...
Aqui está: nono parágrafo: "Não colocamos aqui, no mesmo nível, uma série de movimentos religiosos que se autodenominam "igrejas". A muitos deles faltam tradição histórica e todo um arcabouço que os configure como igreja".
Arcabouço? Como assim?
Uma hierarquia que liga céu-e-terra, especialmente toda a terra; vestes requintadas, Escrituras roubadas do inimigo. Um Estado independente (o Vaticano), arduamente negociado com um poder totalítário.
Para o bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, entre as igrejas 'inferiores' estão aquelas associadas à rendosa telogoia da prosperidade.
A verdadeira origem do papa é o que explica essa superioridade de que a Igreja de Roma não abre mão de jeito nenhum. Essa origem está na República romana, e não em Jesus, Pedro, ou no novo testamento. Esses três elementos foram moldados para reconstruir as bases daquela autoridade, sendo posteriores a ela, e não o contrário.
Isso também nos diz que as verdadeiras raízes da Igreja de Roma são políticas e não religiosas.
Mesmo quando a Igreja de Roma clama que é "apostólica", ela é política. Os apóstolos não inspiraram nenhuma ligação mais íntima com Jesus, mas serviram para uma crucial finalidade política: legitimar o poder papal, através de uma linha sucessória forçada, a partir de um forçado primeiro papa, um pescador judeu, que tão estranhamente dá nome ao trono dessa longeva autoridade romana.
E onde está o artigo da Igreja?
Aqui: http://mariangelapedro.blogspot.com/2009/12/valsa-da-igreja-no-fim-do-ano-bailar.html
Separamos o artigo do bispo em outra postagem, para que você possa abrir duas janelas e, assim, ir e voltar desta nossa análise para o texto do bispo, facilmente.