A leitura deste texto é recomendável para apreciar melhor a postagem que sairá amanhã, 24/12, com ensaio de minha autoria, impregnado com o "clima" do Ato Institucional 5, termo que me lembra de "razão regimental", que tanto ouvi na Secretaria de Pós da FFLCH, sobre meu doutorado.
Que saudade do AI-5!
Arnaldo Malheiros Filho "O ATO Institucional nº 5 foi a antilei que instaurou o antidireito no Brasil, na noite negra de 13 de dezembro de 1968. Entre outras atrocidades, proibia o habeas corpus nos casos de crimes contra a segurança nacional e a economia popular. Só. Para qualquer outra acusação não havia restrição.
Bastava escrever na capa do processo que se tratava de um desses crimes e não vigia o direito constitucional de pedir habeas corpus.
Certa vez, um promotor da 6ª. Vara Criminal de São Paulo ficou indignado porque foi interrompido em audiência por um insistente vendedor de livros e deu-lhe voz de prisão -por qual crime, por querer vender livros?-, apontando o delito político de tentar impedir a realização de sessão legislativa ou judiciária para fazer agitação... Decorreram 30 dias até que o coitado fosse solto, diante da evidência de que ele não era um ativista, pois um habeas corpus era proibido no caso.
Depois de uma fase mais obscura, Geisel passou a falar numa ‘abertura’, mas ela tinha que ser ‘lenta, gradual e segura’. Ninguém queria esperar, ninguém queria abertura ‘lenta e gradual’, mas a palavra ‘segura’ lembrava que havia gente poderosa à direita do governo capaz de comprometer os planos liberalizantes.
Foi quando alguns juristas, como Oscar Dias Corrêa e Raymundo Faoro -a princípio hostilizados pelos mais radicais-, passaram a conceber fórmulas ‘gradualistas’ de encerramento do ciclo autoritário. Por esse tempo, o jornal ‘O São Paulo’, da arquidiocese de dom Paulo Evaristo e sob a competente direção de Evaldo Dantas Ferreira (o repórter que achou Klaus Barbie, o carrasco de Lyon, no Paraguai), havia se tornado um veículo importante no combate ao que então se chamava ‘o sistema’, apesar da censura que sofria. Nele, José Carlos Dias publicou um artigo que marcou época. Chamava-se ‘Por que não o habeas corpus já?’. O texto mostrava que o simples direito de petição ao Judiciário não haveria de desestabilizar o ‘sistema’ e seria um grande passo para a volta à normalidade institucional.
A idéia não vingou, mas lançou uma esperança. Depois de anos, a democracia finalmente se reinstalou. Mas o AI-5 só excluía o habeas corpus para os crimes contra a segurança nacional e a economia popular. No mais, continuava a mesma amplitude de sempre, pois modificá-la era tarefa que a ditadura militar não ousaria.
Recentemente, temos visto abusos do Estado que nos tempos negros do AI-5 não ocorriam: os DOI-Codi poupavam os juízes de autorizar violências. Hoje, porém, há um consenso segundo o qual qualquer arbitrariedade, se praticada com ordem judicial, é legítima; as megaoperações meramente pirotécnicas, à custa da imagem dos atingidos; a invasão de escritórios de advocacia em busca de provas contra clientes, coisa que os militares jamais fizeram. Juízes há -ainda bem que são poucos- que não disfarçam sua ojeriza ao instrumento da liberdade e baixam sua miniatura de AI-5 particular, negando sistematicamente os que lhe são pedidos.
Mas agora chegamos ao apogeu: leio na revista ‘Veja’ que há quem considere o habeas corpus um ‘nó’ para a repressão e pretende limitar seu uso ‘a situações muito pontuais’, a fim de que ele não seja um instrumento da impunidade.
Ou seja, o ímpeto repressivo, aquilo que a juíza norte-americana Lois Forer chamou de ‘rage to punish’ -a ânsia de punir-, atropela todas as garantias individuais conquistadas depois de duras lutas contra a ditadura.
Pior, quer ir além da ditadura. Nosso Código de Processo Penal é um monumento do Estado Novo, inspirado no fascismo italiano. Já há quem diga que os fascistas eram uns incorrigíveis liberais, que faziam leis cheias de direitos para os réus, com excesso de recursos gerando impunidade, como se pedir em juízo fosse uma praga burguesa.
O regime hoje não é militar, mas há civis -pior, há até magistrados- capazes de fazer coisas muito mais graves contra os direitos individuais.
Nem mesmo a ditadura militar, com todo o seu aparato autoritário e antijurídico, chegou a propor a ‘limitação’ do habeas corpus a ‘situações muito pontuais’, chegou a proibir aos réus o direito de recorrer.
Quem quer amputar o habeas corpus e proibir os recursos quer que certas violências contra o indivíduo não tenham remédio, valendo sempre a vontade do Estado, ainda que representado por um juiz. Socorro! Quero o AI-5 de volta, pois ele não chegou a tanto.
ARNALDO MALHEIROS FILHO , 57, advogado criminal, é presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa."
Obtido da página Observatório da Imprensa, seção "Entre Aspas" ref. a 21/08/2007