Friday, November 13, 2009

Ora bolas! A quem Deus é fiel?

O que ainda me faz pegar na Folha de S.Paulo são os artigos publicados na coluna Tendências e Debates, na nobre página A3. Muitos deles são esplêndidos.

Ontem saiu um desses maravilhosos textos, através dos quais ainda tomamos conhecimento de gente de que jamais houvéramos ouvido falar até então.

O tema de tal artigo é... Deus. Sim, está até no título do artigo: "Deus é fiel". Mas, devo corrigir-me: o autor não fala tanto sobre Deus quanto sobre as mentes mesquinhas que fazem de Deus uma banalidade, uma aberração e, sempre sem o reconhecerem, também fazem de Deus objeto de racionalizações para "ocultar nas sombras a podridão humana", reproduzindo palavras de Cláudio Guimarães dos Santos, o autor do artigo a que me refiro, e que reproduzo integralmente abaixo.

A argumentação de Cláudio é impecável, exclusiva de quem é capaz de pensar, porque é humilde para questionar honestamente até suas mais duras teimosias e obstinações. A leviandade e falta de lógica inerente ao tão popular dogma "Deus é fiel" fica exposta e o texto já teria plenamente cumprido sua "missão". Entretanto, Cláudio ainda aprofunda sua tese, tocando - sucinta mas magistralmente - no "nó", no crucial da questão: a personalidade disposta a obedecer, que é de todos os que também propalam "manda quem pode, obedece quem tem juízo", o que, no final, já bem indica a quem são fiéis os in-fiéis que vivem a ensopar o nome de Deus de saliva. Escreve Cláudio, no último parágrafo, que precisamos "ter coragem para lutar contra a tendência universal da humanidade a se curvar e a obedecer, que é muitíssimo maior do que qualquer eventual vontade de autonomia".

Perfeito. Assim de fato é a humanidade, apesar de Jesus ter, segundo a "palavra de Deus", asseverado: "Lembrem-se de que vocês só têm um pai [um único apenas a quem obedecer, portanto]. E ele está no céu".


Deus é fiel


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Eis uma frase que vemos, atualmente, estampada por toda a parte. Mas, afinal, o que diabos significa dizer que Deus é fiel?
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EIS UMA frase que vemos, atualmente, estampada por toda a parte: dos gigantescos outdoors aos vidros dos automóveis, sem falar dos templos, das traseiras de caminhões e das faixas ostentadas nas passeatas pop-evangélicas.

2. Num outro momento e lugar, esse fato talvez não merecesse maiores considerações. Afinal, fanatismo religioso e proselitismo exagerado sempre houve neste "mundo de meu Deus", e por sua causa já muito se matou e se morreu.

3. Todavia, não podemos esquecer que é de um "ungido" Brasil pré-eleitoral que estamos falando, ele mesmo situado numa América Latina "consagrada" a líderes messiânicos que se creem mais do que deuses.

4. E, se apenas alguns deles ousam ser tão blasfemos a ponto de se compararem ao próprio Cristo, todos eles, sem exceção, desejam ver os seus mandatos religiosamente prorrogados "até o final dos tempos". Ou, se tal não for possível, devido às manobras da "maligna" oposição, esperam ao menos passar a faixa presidencial para o discípulo ou a discípula mais amada, na esperança de que, em breve, possam voltar -ressuscitados- ao poder que idolatram de forma luciferina.

5. Cabe-nos, portanto, investigar, ainda que brevemente, o que diabos significa dizer que Deus é fiel.

6. Em primeiro lugar, não deixa de ser notável que, num mundo onde a infidelidade sempre foi a regra dominante (se é que desejamos ser fiéis à verdade), se procure atribuir a Deus, com especial relevância, não a qualidade de ser bondoso ou justo, mas a de ser fiel. E isso precisamente numa época em que reina a publicidade -a "sacerdotisa-mor" da mentira, a "deusa-mãe" do engodo - e na qual amigo trai amigo, os sacerdotes traem os seus rebanhos, os políticos os seus eleitores, os comerciantes os seus clientes etc.

7. Não seria isso, talvez, algum tipo de "projeção compensadora", semelhante às discutidas por Freud, Marx, Nietzsche e Feuerbach, que visaria, ao jogar toda a luz sobre a divina perfeição, ocultar nas sombras a podridão humana?

8. Por outro lado, quando dizemos que Deus é fiel - supondo que saibamos, na teoria e na prática, o que é fidelidade-, na mesma hora nos vem à mente uma questão: a quem, nesse caso, seria Ele fiel?

9. Aos católicos que trucidaram protestantes ou aos protestantes que trucidaram católicos? Aos nazistas que assassinaram judeus nos campos de concentração ou aos israelenses que supliciam palestinos nos campos de refugiados? Aos muçulmanos que mataram "ocidentais" no 11 de Setembro ou aos "ocidentais" que massacram muçulmanos no Iraque e no Afeganistão? A Stálin, Pol Pot e Mao, que eliminaram dissidentes como matamos mosquitos, ou a Hitler, Mussolini e Franco, com suas terríveis atrocidades? Aos corintianos que esfolam palmeirenses (e vice-versa) ou aos cronistas esportivos que, por maldade ou ignorância, estimulam a violência nos estádios?

10. Infelizmente, se examinarmos as coisas como de fato se apresentam - tendo a história como suprema corte, como dizia Hegel - e não com os benevolentes olhos do "outro mundo", forçoso será concluir que o Pai Eterno se mostra bem mais fiel aos que esbanjam dinheiro nos shoppings de luxo do que às crianças que se acabam nos semáforos da Pauliceia; aos que erguem as odiosas barreiras transnacionais do que aos migrantes de todas as latitudes que não se cansam de tentar atravessá-las; aos malandros que vendem a salvação neste ou n'outro mundo do que aos crédulos que tolamente a compram; enfim, aos malvados, desonestos e egoístas do que aos bons, corretos e solidários.

11. Eu, que não sou teólogo, ouso crer, piedosamente, que Deus - se é que Ele existe - não é fiel a mortal algum, mas unicamente a Si mesmo, à Sua inextrincável complexidade, à Sua silenciosa incompreensibilidade, à Sua incognoscível natureza (incognoscível, quem sabe, até para Ele).

12. O que nos resta, a nós mortais, se formos lúcidos, é o enfrentamento cotidiano da terrível solidão desses espaços infinitos, que tanto assustavam Pascal, e dos quais provavelmente não virá resposta alguma, sobretudo se as perguntas forem feitas por pseudossacerdotes ou por políticos de ego inflado.

13. O que precisamos, no fim das contas, é ter coragem para lutar contra a tendência universal da humanidade a se curvar e a obedecer, que é muitíssimo maior do que qualquer eventual vontade de autonomia. Por causa dessa tendência, uns poucos "lobos" espertalhões são capazes de pastorear rebanhos gigantescos de "carneirinhos humanos", que se prostram agradecidos ao jugo do chicote, sempre contentes e -claro- fidelíssimos.


blog do autor: perplexidadesereflexoes.blogspot.com (perplexidades e reflexões - "tudo junto", sem o til)
Publicado na Folha de S.Paulo, 12/11/2009, p. A3

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