Emoções. Do "nada". Aconteceu porque, mais uma vez, fugi da balbúrdia da avenida Santo Amaro e, aliviada, começara a caminhar pela estreita, desconhecida e verde rua Arminda que, naquele dia, mostrou-se ainda mais aprazível, como raro refúgio da agitação de fim de ano, em pleno sábado, a exatamente dez dias do natal. O ano, 2007.
Logo a avistei. Sua agonia fez-me parar como se surpreendida pela aparição de uma santa. (que santa? ora, não importa.) E ela, ainda em desespero, lançou-se ao ar. Que insólito!
Estupefata, testemunhei aquele voo em ângulo fora do usual – não na horizontal, ou com pequena inclinação, mas praticamente na vertical!
E o que causava diretamente tudo aquilo, que só a pacata rua Arminda observava – a rua, não seus moradores – era... um saco plástico. Este se inflava completamente de ar, exigindo um esforço sobrenatural no empreendimento de cada esdrúxulo voo, normalmente leve e gracioso.
Não; você, leitor (a), não vai acreditar. Irá ficar, ainda por cima, com raiva, porque vou lembrar-lhe de todas as vezes em que você atirou aquele seu lixinho na rua... e pronto: "Todo o mundo faz assim".
Saí atrás dela. Claro! – agora, ela estava no chão. Com o mesmo desatino, enfiara-se debaixo de um carro estacionado, movendo-se de modo que parecia imprudente, mas não era. Esbarrava de propósito no que estava à sua volta. "Não! Não é possível que esta coisa não se solte de mim"!! - devia estar martelando, aquela agoniada criatura.
Tentei acompanhá-la; no meio da rua, curvei-me para procurá-la, mas não a vi mais. Foi o zelador de um dos prédios quem me ajudou:
– Está ali!
Sim. Lá estava, ainda ziguezagueando sobre os paralelepípedos da rua Arminda. Felizmente, a rua não era movimentada. Não vinha carro algum, eu me certifiquei.
– Queria chegar mais perto, mas ela não vai deixar – desabafei.
O tal zelador agora participava daquela estranha dança; ou era quase uma patética brincadeira de roda, com uma... Caramba! Você ainda não descobriu quem vivia um dos mais desesperados instantes de sua vida? Não; não era eu. Era uma... pombinha.
O zelador se aproxima dela. Ela se esquiva. Continuamos, eu e ele, a “brincar de roda”: andávamos de lado, mas ambos na mesma direção, mais ou menos um de frente para o outro; a pombinha, no centro.
De repente, quando ela alçou voo novamente, o zelador a acompanhou. Explico: deu um salto e a agarrou, penas se desprendendo. Eu vibrava:
– Muito bem! Livre-a disso.
E aquele bondoso zelador havia decidido fazer isto mesmo: com movimentos precisos, ligeiros, retirou as alças do saco plástico (como os de supermercado) que se haviam engatado nas asas daquela criatura. Justamente nas... como dizer... nas reentrâncias de seus membros penados que, um dia, inspiraram os inventores do avião.
Se não fosse uma pomba, mas um avião... E se você, leitor (a), estivesse a bordo... Já era!
Aquele ocupado zelador, que largara seu balde e seu esfregão, outras tantas qualidades ele reservava! Removeu exemplarmente o saco plástico que, em total afronta à natureza, estava acoplado naquela... ave.
Ainda não consegue imaginar a cena, leitor (a)? Um saco descartável de compras, que alguém largara “por aí”, gerou uma aberração, uma experiência sem precedentes para mim e, quase certamente, para o zelador e sensações incomuns para uma pomba: de início quase insuportáveis mas, por fim, extremamente positivas.
– Você a livrou [do saco plástico]! – festejei.
– Nossa!! – exclamou o zelador, diante da reação da pombinha que acabara de soltar.
Como a pomba então voou, em maravilhoso rasante, com velocidade, elegância e determinação, confirmou que os bichos são capazes de sentir.
Voltei a seguir pela incógnita rua Arminda, sorrindo com a emoção daquele voo. Penso que até uma pomba conhece mais de liberdade do que eu e você.
Atirar coisas por aí, descuidadamente, nada tem a ver com liberdade. Incrível essa mentalidade, que chegou ao ponto de associar a falta de responsabilidade com liberdade.
Agora me pergunto: quanto tempo aquela pomba viveu em tamanho desespero? E percebo que uma raridade parece ter atraído outra: que raro zelador!
Ok, não me acuse de modéstia. Reconhecerei que o zelador não teria livrado a pombinha se eu não me tivesse envolvido e prestado atenção àquela ave e seu suplício. Fui eu quem começou a "brincadeira de roda"; tomei as dores e sugeri a solução: "se ela deixasse"... Mas quem executou o que devia ser feito foi o zelador.
E, também merece nota, a pombinha fugia das pessoas que, por fim, a libertariam. Como isso é corriqueiro, quando não temos pomba alguma na situação, mas apenas gente.
Pensando mais um pouco sobre o que ocorreu, começo a identificar algumas categorias de pessoas, cuja ação conjunta, de todas elas, determinaria um estado geral de coisas. Ao delinear tais grupos, talvez percebamos melhor como as variações de ser no mundo descortinam, ao fim e ao cabo, a governança do mundo.
Na primeira categoria vislumbro os prepotentes irresponsáveis, alguns com poder significativo. São, quase todos, insensíveis. Mas têm “evoluído” rapidamente para que sejam avaliados não como insensíveis, mas como carismáticos. Você deve conhecer quem fume e admita o vício com um sorriso e uma piadinha. Quem, diante de um absurdo, como o que permeia esta história, dispare, também com um risinho: “É preciso saber levar essas coisas”.
Concebo, numa segunda categoria, os visionários – os que veem o que os demais não veem e são capazes de determinar o que deve ser feito. Mas, muitas vezes, não podem executar eles mesmos: ou não têm o poder político, ou não dispõem dos recursos, o que inclui a colaboração de outras pessoas. Recebem outros nomes estranhos; o mais estranho de todos: herege.
Em terceiro, vemos as vítimas apresentadas em massa, ziguezagueando em desespero, já que, por incrível que possa parecer, não possuem a capacidade de discernir os visionários – que podem e querem construir – dos prepotentes irresponsáveis, que poderiam, mas não querem, construir e tendem a destruir mais e mais – nos últimos tempos, ostentando um sorriso.
Em seguida, temos os sensíveis que, diante da luz dos visionários, agem. Não conheço muitos assim, como o zelador.
Não propriamente na história, mas geralmente em torno dela, tais como os personagens desconhecidos que causaram o suplício da pombinha mas não surgem no “palco”, há os insensíveis. Muitos destes são também prepotentes irresponsáveis, com mais ou menos poder; mais ou menos “carisma”. Diante dos visionários, sentem-se ameaçados, agredindo-os, quer aberta, quer sutilmente. São maioria absoluta e costumam colaborar uns com os outros, ou serem cúmplices entre si.
Assim, os insensíveis, geralmente, detêm mais poder do que os visionários. Mas falta-lhes justamente a Visão. Respondem não à ética, à inteligência, à beleza, mas à autoridade (“manda quem pode, obedece quem tem juízo”). Se não têm poder político, são apenas obedientes; matam em nome de qualquer bobagem chamada ideologia ou teologia que ouvem por aí (“as coisas já estão estabelecidas, fazer o quê?”). Os que chegam ao poder institucional, mandam matar e podem efetivamente mandar – há sempre, em grande número, quem obedeça.
Parece que agora percebemos nitidamente algo bem importante: é no cotidiano que a governança do mundo tem de fato seus operadores; ainda, passamos a ter consciência do que está por trás do sentimento corriqueiro de que tal governança não dá mesmo muito certo.
Mas que bom! Naquele dia, vivi uma exceção, um final feliz.